quinta-feira, julho 28, 2005

meu deus, como eu conheço bem os séculos!


O melhor da literatura francesa foi o século XVII e o XIX. E digo e porque o século XVIII me impede de dizer ao. Claro, a época do Ilumismo foi uma grande mudança na sensibilidade, no pensamento do Ocidente - uma mudança para pior, pode ser, mas mesmo assim uma grande mudança. Só que o Iluminismo cheira a estábulo. Dos livros de Rousseau, de Montesquieu, se desprende aquele odor perculiar de alguém que antes de escrever ordenhou vacas.
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(O século XVII, sim. Corneille, Pascal, Racine, La Rochefoucauld. Sem contar os dois Luíses, e Richelieu, e Mazarin. Perto disso, a única contribuição cultural do século XVIII foi Voltaire ter chamado o século XVII de Grand Siècle. Mesmo assim, Zadig é divertido.)
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E por este mesmo motivo o século XIX foi tão bom. O século XIX foi uma tentativa de limpar os restos de palha e o cheiro de estábulo que os democratas insistiram em semear entre as páginas dos livros. Por isso o dandismo, este purificador de ar da literatura. No fim, a história do século XIX na França não é mais que a história de um vendeiro em mangas de camisa, o Sr. Dupont, insultando em público a figura resignada de um dândi através dos livros do Zola. E um dia, de tanto ser insultado, o dândi se recolheria, buscando refúgio em meio aos sacos de arroz e farinha no fundo da venda do Sr. Dupont. Mas isso foi um pouco depois, num dia de outono de 1940 - o que faz da venda do Sr. Dupont um lugar festejado até hoje por presidentes sul-americanos, e da história do século XX uma história meio melancólica.

segunda-feira, julho 25, 2005

wisdom and high heels


Ginger Rogers




[About Fred Astaire] "Sure he was great, but don't forget Ginger Rogers did everything he did backwards . . . and in high heels!"

Marlene Dietrich



"How do you know love is gone? If you said that you would be there at seven and you get there by nine, and he or she has not called the police yet - it's gone."

"I love quotations because it is a joy to find thoughts one might have, beautifully expressed with much authority by someone recognized wiser than oneself."


"Think twice before burdening a friend with a secret."

"[The lover says:] How beautiful you are, now that you love me"

"Latins are tenderly enthusiastic. In Brazil they throw flowers at you. In Argentina they throw themselves."

"Sex. In America an obsession. In other parts of the world a fact."

Greta Garbo:




"Your joys and sorrows. You can never tell them. You cheapen the inside of yourself if you do tell them."


Mae West




"Between two evils, I always pick the one I never tried before."

"Give a man a free hand and he'll run it all over you."

"Good sex is like good bridge. If you don't have a good partner, you'd better have a good hand."

"I generally avoid temptation unless I can't resist it."

"I wrote the story myself. It's about a girl who lost her reputation and never missed it."

"Ten men waiting for me at the door? Send one of them home, I'm tired."

"You only live once, but if you do it right, once is enough."

Louis XIV



"Has God forgotten all I have done for Him."

I love death


Vejam isto: http://koti.welho.com/alaari/lodger/

(Minha total mongolice me impede de linkar comme il faut. Mas existe um charme arcaico em deixar o endereço assim, feinho,sem disfarçe. Quer dizer, talvez não exista, mas pelo menos me consola.)

domingo, julho 24, 2005

noel coward on criticism


"Criticism and Bolshevism have one thing in common. They both seek to pull down that which they could never build."

(Já faz duas semanas que não consigo dormir, recebendo telefonemas ameaçadores de leitores exigindo um post só com citação. Voilá finalmente.)

sexta-feira, julho 22, 2005

por que festas?


Não, não é que eu esteja contradizendo o post anterior. Sei que contradições são como giz em quadro-negro: causam chair-de-poule em alguns leitores. Não, definitivamente não é isso. Mas é que existe a remota possiblidade de festas serem quase tão boas quanto livros. E talvez nem tão remota assim: já fui a algumas que como literatura eram infintamente melhores que as obras completas do Camus. Depende da qualidade dos personagens que você encontra nelas. E como em qualquer boatezinha dá para achar mais personagens divertidos que em toda a literatura existencialista - well, concluam vocês. Além disso, até poderia argumentar que eu, ao natural, sou bem mais interessante que a maioria das criaturazinhas que cuidadosamente se arrastam na "Idade da Razão". Mas existe uma séria contradição lógica na proposição que junta "eu" e "ao natural", e que me impede de servir de exemplo à tese.

Claro, não é qualquer festa que pode contar como literatura. Funcionário público em fim de ano, nem pensar. O mesmo para chá-de-fralda. Porque para uma festa contar como literatura, deve ter pelo menos: a) 50% das mulheres vestidas elegantemente; b) 50% das mulheres elegantemente vestidas; c) homens gordos, de piteira; d) garçons servindo Veuve-Clicquot (verdadeiro ou não, pouco importa); e) comentários maldosos feitos amavelmente. Para os dois primeiros requisitos, estou biologicamente impossibilitado; para os outros dois, me faltam peso e dinheiro; mas do último, eu geralmente me encarrego. E muito bem, devo admitir. Por exemplo, teve aquela menina chata, tão chata quanto magra, que me perguntou se eu não queria vê-la nua e que eu dispensei, respondendo que já tinha visto Cocoon duas vezes, obrigado. E teve também a bicha inglesa que tentou destruir a festa de um amigo e de quem eu me vinguei mais tarde, drogando-a com seis uísques, dois daiquiris e 23 drágeas de benflogim infantil. (A propósito, feliz Bette Davis se tivesse descoberto a tempo o truque do benflogim com álcool; a ressaca é sempre mortal.) Enfim, tantos feitos, tantas marcas, tantos exemplos de moralidade irrepreensível. De tão satisfeito comigo, acho que meu nariz vai sangrar.

No fim, toda festa boa parece literatura, e toda boa literatura se parece um pouco com festa. (Não, leitor, não adianta; não consigo conter estes impulsos que me levam a generalizalções impróprias. Mas vou tentar, ó:) Ok, talvez nem toda boa literatura seja como festa. Mas é sintomático que à medida que os romances foram ficando mais chatos, as cenas de festa foram ficando mais raras. Madame Bovary no baile do castelo, se olhando no espelho enquanto é cortejada por condes e duques (vejam esta cena filmada por Vincent Minelli; vejam). O estudo dos monóculos dos convidados em "Du Côté de chez Swann". E, para variar os livros do outro post (que se repetiram, se repetem e se repetirão por serem os meus favoritos), M. de Nemours e a Princesa de Clèves se reconhecendo só pela beleza mútua num baile do Louvre. E agora: onde, onde é que se acha cena de festa em toda a obra do Sartre?


Acho que encontrei um bom indicador de chatice literária.

quarta-feira, julho 20, 2005

por que livros?


Primeiro: porque cidades são feias. Cidades são aquele tipo de coisa que tem um conceito maravilhoso, mas uma materialização frustrante. Para identificá-las é simples: um amontoado de prédios cinza, anúncios de mau-gosto e gente que não vale nada. Até Paris, até Ankara, até Santiago de Compostela são assim. Porque na frente da Sainte-Chapelle tem sempre um porteiro tunisiano discutindo, sei lá, partida do Paris Saint-Germain com o chefe do almoxarifado, enquanto você tenta ver os vitrais. E é essa promiscuidade mental, essa obrigação de estar sempre mal acompanhado, que estraga qualquer coisa interessante que você esteja fazendo em qualquer cidade grande do mundo, de Porto Alegre a Paris.

Mas não é só em cidades que pessoas são viscosas: ao natural mesmo elas não são muito melhores (menos eu e a minha mãe, claro). E o problema não é só aquele cheiro peculiar que sociedades coletivistas ou quartos fechados com muita gente exalam, não. Nunca me esqueço de uma cena de "A la Recherche du temps perdu" em que Saniette, o filósofo paspalho e courinho dos Verdurin, é humilhado num jantar na casa deles. Proust diz, então, que Saniette se retraiu, baixou a cabeça e olhou para os convivas com o olhar resignado de quem sabe o quão pouco valem as afeições humanas (não lembro direito as palavras; devo ter anotado em algum lugar. Mas é mais fácil achar esta cena nos sete volumes de "A la Recherche" do que anotações na minha gaveta). E a vida em sociedade não é muito mais que isso: hordas de Saniettes sendo escorraçados de salas-de-jantar, lutando cômicamente para serem Verdurins uns dos outros. Com a diferença de não entenderem que a vida pode ser menos boba do que isso.

Tanto é assim que a boa literatura dos últimos 200 anos tem sido uma constante demonstração do nada que são as relações entre os homens. Madame Bovary cometendo suicídio por amantes que na verdade eram a ela indiferentes. Brás Cubas filosofando amargamente no post-mortem. E a própria "A la Recherche..." não é mais que a história de um homem tentando achar satisfação no amor e na mundanidade e não encontrando em lugar algum a não ser no seu próprio passado. O que os realistas-ou-quase fizeram de bom foi ter mostrado com (sórdidos) detalhes a feiúra da vida deixada por si. Por isso mesmo, o realismo puro é incompleto; depois de escrever "Madame Boavary", é preciso apontar um ideal - o que faz de "Salammbô", por exemplo, um grande romance.


(Porque mesmo fazendo concessões, continuo achando o realismo dull. Não são os personagens que devem parecer pessoas; são as pessoas que deviam parecer personagens.)

Mas a melhor razão para os livros é as roupas serem muito caras. Sério. Se eu pudesse, seria um pequeno Balzac da blogosfera, recebendo 50 reais por cada acesso no meu site e usando o dinheiro para pagar dívidas na Casa das Sedas. Porque, afinal, a beleza é uma coisa-em-si que pode se manifestar tanto num blaser de veludo quanto num poema do Paul Valéry ou no nariz de um menino grego chamado Carolos. E foi graças a estes poemas do Paul Valéry que ontem à noite gastei só 20 reais com "Charmes" e não me endividei em mais de 600 com o blaser que eu queria. Viva a literatura: troquei um pelo outro, escapei de uma boa chance de ter meu cartão de crédito cancelado e ainda voltei para casa satisfeito. Se tivesse achado o menino Carolos numa vitrine por 14,90, a satisfação teria sido completa.

E podem, podem me chamar de alienado. Mas boa parte das pessoas que acompanham em detalhe eventos irrelevantes como vida sexual de atrizes de novela ou crises políticas em países sul-americanos também são alienadas quanto à queda do Império Romano do Ocidente, e ninguém fala nada. Nem eu. Só acho que preferir Gibbon ao casal do Jornal Nacional pode não ser muito comunitário e engajado, mas é mais bonito. Questão de delicadeza gástrica.

terça-feira, julho 19, 2005

felicidade e coluna vertebral (recado amigo para uma querida menina estroncha)


Tem quem meça a felicidade objetivamente. Entrevistas, questionários, verdadeiro-ou-falso, tudo para saber o quanto a criatura não é gauche na vida. E, se o entrevistado fecha 80 pontos, ganha um biscoito Scooby.

Eu também meço a felicidade objetivamente. Mas pela coluna. Acredite, os infelizes, além de acne, mau hálito e uma incontrolável tendência à maledicência, têm a espinha encurvada. Quanto mais próximo a 90 graus, mais infeliz a criatura. E, logo, mais venenosa.

Só não me pergunte o que causa o quê. Não tenho certeza. Mas suspeito que a relação felicidade-coluna vertebral seja um dos poucos casos em que o sintoma é na verdade causa. Deve ser a própria postura atrofiada do corpo que predispõe à tristeza e às pequenas vinganças. Sim, uma correlação entre calombo nas costas e corcundice moral. Conselho: submeter o corpo a disciplina militar: enrijece o que está flácido, inclusive a estabilidade mental. Senão, hidroginástica também resolve.

Il est plus honteux de se défier de ses amis que d'en être trompé. (La Rochefoucauld)

segunda-feira, julho 18, 2005

a crítica da razão pura e um par de glúteos durinhos


Quase toda discussão se divide em dois momentos: momento a) a argumentação racional entre opositores; momento b) o soco na cara. Até porque o arbitrário é um muro em que a razão mais cedo ou mais tarde dá com a cabeça, e nada mais natural do que ela querer botá-lo abaixo com golpes de picareta. Assim, muito do que parece puro ato de violência é, na verdade, resolução definitiva de impasses filosóficos. Ninguém sabe, mas a Segunda Guerra, por exemplo, começou circa 1870, em Leipzig, com dois filósofos gordinhos numa discussão sobre Teoria do Estado que só se resolveu uns 70 anos depois, quando os russos bateram os alemães em Stalingrado.

Portanto, um filósofo não é mais que alguém disposto a se demorar muito no momento a) e evitar ao máximo o momento b). Anos lendo Leibniz, Platão, Descartes, só para isso. Mas nada impede que, se necessário, ele use meios mais eficientes que a razão para estabelecer a diferença entre forma e substância - o kung-fu ou a luta-livre no gel, por exemplo. Em função disso, nossos cursos de filosofia são incompletos. Além de um estudo detalhado da "Metafísica" e da "Crítica da razão pura", seria aconselhável a prática do aeroboxe e da lambaeróbica, além de noções básicas de full-contact. O que só traria benesses aos nossos filósofos: glúteos mais durinhos e aumento na capacidade de pensamentos originais. Claro que em casos como o de Miss Shall-We uma melhora seria difícil, tanto nos pensamentos quanto nos glúteos. Mas tenho certeza de que esta é a única maneira de os filósofos malemolentes darem alguma contribuição defintiva à filosofia ocidental: nada de conceitos sutis, nada de dialéticas intrincadas, mas uma dupla voadora no pince-nez do reitor da Sorbonne que ousou questionar o filósofo-instrutor-de-capoeira sobre a relação entre uno e multiplicidade. O que indica, ao menos, grande capacidade de síntese: pula-se o momento a) para chegar direto ao soco na cara, momento decisivo de qualquer discussão intelectual.

sexta-feira, julho 15, 2005

friday night fever


A única coisa que muda num bar gay depois de dois anos é a qualidade das músicas - cada vez mais baixa - e as cinturas dos seus velhos conhecidos - cada vez mais fofas. De resto, as pessoas são sempre as mesmas, mesmo quando não são. Todo mundo é malcovitchianamente parecido, e eu espero o dia em que alguém com três-alguma-coisa brote numa pista de dança: três testas, três mandíbulas, três joelhos em cada perna. Só não aconselho três mamilos; se com dois a maioria já parece loira do multishow depois da meia-noite, com três o espetáculo seria degradante. E haveria o perigo de eles imitarem ainda com mais afinco vilãs de novela fazendo maldades ou a Heleninha Hoitmann bêbada: o número de zonas erógenas aumenta drasticamente a taxa de lascívia e afetação num corpo humano adulto.

(Estou sendo injusto? Well, eu posso. Pelo menos agora os gays não precisam esperar pelos outros para falar mal de si mesmos publicamente. Y compris nos seus próprios blogs, claro.)

um novo aparelho de chá


Mudanças na cristaleira. Troquei aquele bule sixties cor-de-laranja por um aparelho de chá em porcelana, finíssimo, estilo transição nouveau/déco. Uma graça, não?

Mudei porque afinal a idéia deste blog é exatamente a da imagem acima: senhoras ricas, elegantes e discretas se reúnem todo o dia às cinco para falar das amigas ausentes. Claro, as amigas ausentes podem ir de Sócrates a Charles Aznavour, e os comentários podem nem sempre ser muito amáveis. Mas todas servem chá umas às outras, pedem licença para levantar, só usam chapéus ingleses. E como em sociedade gentileza é bondade e bondade é gentileza; well, you know the rest.

Então, sejam bem-vindos; a casa é a mesma, mas quanta diferença. E cuidado com a cristaleira!

quarta-feira, julho 13, 2005

"Dicionário Rodrigo de Lemos dos Sonhos Mais Legais"


Freud, Ok. Mas interpretar sonhos é dull. Prefiro ver os sonhos da forma mais elementar e não-intelectual possível: como imagens, e não como mensagens de um desconhecido gentil. Exceção: quando são premonitórios. E só aí. No entanto, a crença em sonhos premonitórios é um luxo que, assim como os vestidos belle-époque ou os privilégios de nobreza, as pessoas de agora não se permitem. Pior para elas, é claro.

O ponto é que eu nunca quis ir muito fundo na análise dos meus sonhos. Alguns eram tão absurdos que seriam bem difícieis de estudar - ou não, ou não; talvez fossem até bem simples; todo mundo acha que os seus sonhos, de tão especiais, são inanalisáveis. Isso porque a vaidade não tem medida, e as pessoas louvam em si próprias até mesmo o que fizeram sem consciência. Anyway, o que realmente me impedia de analisar meus sonhos era um delicadeza, um escrúpulo, um temor de eles perderem a graça. Um sonho analisado é mais ou menos como aquelas explicações de quadro em livro didático, nas quais o desenhista põe um monte de números, círculos e retas em cima do rosto da Virgem Maria, só para mostrar relações de proporção. Pode até ser útil, mas definitivamente não é bonito. Beleza não combina com andaimes, diz o meu epitáfio.

Enfim, já tive sonhos legais. Um dia ainda vou escrever um dicionário de 700 páginas, o "Dicionário Rodrigo de Lemos dos Sonhos Mais Legais", em que eles vão estar separados por tema, imagens e tamanho das manchas de urina causadas por cada. E já tenho anotados alguns. Num deles, eu sou convidado para assistir às reuniões de uma estranha seita do interior da floresta amazônica. Era o culto de uma índia velha que tivera um estalo na coluna e desde então andava com os braços abertos, em forma de cruz. Até aí, nada de estranho; milhões de velhinhas chilenas, esquimós e dinamarquesas devem ter o mesmo problema. Mas o que havia de realmente milagroso naquilo tudo era a carne dela estar se tornando madeira; a pele, cortiça, e ela inteirinha se transformar pouco a pouco na própria cruz de Jesus Cristo. Ao menos era o que a caboclada do meu sonho dizia, e eu não estava - e mesmo agora não estou - longe de acreditar neles.

Acontece que eu acabei roubando uns objetos sagrados. Não sei por quê; devia estar querendo vender para um jornal de Porto Alegre, tirar uma grana e ir para as Bahamas, como em todo filme dos anos 80. Só que os fanáticos começaram a me perseguir; entravam em shoppings carregando foices e enxadas; faziam gritaria em restaurantes; saíam de bueiros na Rua da Praia urrando xingamentos em tupi. Uma chatice. Só sei que uma hora cansei e procurei refúgio num bairro muçulmano; lá, não entendo também por quê, um árabe me deu um tiro, e eu acordei. Hoje, por causa desta cena do árabe, penso em colocar o sonho na categoria "Premonitório" do dicionário. É que devo ter tido este pesadelo em 98, e qualquer sonho anterior a 2001 que contenha um muçulmano matando um ocidental não pode deixar de me parecer premonitório hoje em dia; odeio admitir isso, mas é fato.

Outro que vai constar: eu voltando da escola. De repente, em frente a uma fábrica abandonada, aparece um grupo de aleijados. Todos com problemas sérios; um, sem perna; outro, de muletas; outro ainda, de cadeiras de roda. Mas o pior é que eles, mesmo a menininha perneta no triciclo, tinham a cara do Jô Soares. Really. Claro, fiquei mais tocado pela sua situação do pescoço para cima do que da cintura para baixo. Mesmo assim, me forçei para não demonstrar piedade, dei a eles uma moeda de 50 centavos, e no fim eles até abanaram para mim.

O problema foi quando cheguei em casa. Estavam todos lá, rindo histrionicamente, fazendo entrevistas sem graça e comendo aquilo que seria o meu almoço. Segurei a raiva, acenei polidamente e fui lavar as mãos no banheiro. Mas, ao chegar ali, foi chocante: havia sangue seco no chão; o banheiro estava deformadamente enorme, e um dos Jô Soares, uma bicha magrinha de cabelos encaracolados, se debatia sobre um pedestal de mármore, cortando os bracinhos meio atrofiados com um serrote numa tentativa heterodoxa de imitar a Vênus de Milo. Acordei apavorado.

Não sei ainda como classificar esse aqui. Quem tiver sugestões.

Mas com certeza a categoria mais divertida será a dos "pesadelos eróticos". Sim, sim, a espécie existe, e já tenho um primeiro exemplar compilado.

Foi uma amiga quem me contou. Quando criança, ela sonhou com o Fofão lhe pedindo um beijinho. Ela negava; ele insistia; ela negava, negava, negava e negava novamente, até que no fim cedeu. Mas minha amiga, ao se aproximar dele, percebeu que as suas bochechas eram testículos enormes. Ela ainda tentou se afastar, desviar o rosto, bater nele, mas o Fofão abriu a boca e um pau gigantesco saiu da sua goela, se enrolou no corpo da criança e deu voltas e voltas e voltas em torno dela, como uma sucuri. Ela acordou gritando, enrolada nas cobertas e abraçada naquele boneco demoníaco do Fofão, que as crianças adoravam na década de 80. Desde então, nunca mais quis brincar com ele ou comer chocolates da Evelyn.


Bem, espero achar sonhos deste nível sempre. Se conseguir, vou vender mais dicionários que a Webster, o Robert e o Aurélio juntos. E ainda reeducar o mundo a levar seus sonhos um pouco mais a sério, e a se divertir com eles. Não-sei-o-quê's do mundo, uni-vos! Abaixo Sujismundo Frodo. Abaixo o Chataeador Dali. Abaixo os pisca-anal-istas.


(Eu e este meu libertarismo incorrigível.)

segunda-feira, julho 11, 2005

cência, crítica literária e cenas da vida agro-pastoril


Boa crítica literária: um grande homem lendo um grande texto. Só isso; nada de método, epistemologia, teoria crítica. Crítica literária científica é no máximo um recruta, um baixinho-de-óculos no banco de reserva, que a gente escala na falta de QI's maiores que 1m90. Enfim, Biotônico Fontoura na infância resolve o problema de qualquer Jackobson, juro que sim.

Qual meu problema com críticos metodológicos? É só pensar nos maiores impressionistas do século XIX. Anatole France, Marcel Proust; mesmo Eliot, que tanto combateu o impresionissmo, herdou a qualidade de fazer crítica como conversa, sem formalismo. Sim, grandes escritores foram críticos impressionistas, e fizeram boa crítica. Agora, quanto de ficção escreveram, sei lá, os formalistas russos? Algum poema inesquecível? Algum grande romance? Tudo que o cientificismo literário soube criar foi críticos que não escrevem - ou seja, médicos que não abrem cadáveres.

Isso porque, para eles, ler é igual a aplicar um método. Existem procedimentos, coisinhas-a-fazer diante de um poema, que garantem um ponto de partida no mínimo decente para uma análise. Parece razoável e limpinho, não? Mas repugna. O método é uma estalajadeira sebenta que recebe qualquer um, a qualquer hora, a qualquer preço, basta o sujeito querer uma vaga - o método é pegajosamente democrático. E é mediocrizador por definição - se não garante que você vá dizer coisas geniais sobre um texto, pelo menos que supostamente não vá dizer besteira. O que, por isso mesmo, mata a possibilidade de ser genial. Por outro lado, fazer boa crítica sem método assusta a carneirada precavida. O único temor dessas vidinhas agro-pastoris é a falta de critério entre um A e um B numa tese de mestrado. Que alguém escreva como se conversa, e não como se deita conhecimento; que escreva como um indivíduo, e não como um cientista; que escreva como um cavalheiro, e não como um erudito; tudo isso é inaceitável para eles. E vem sempre aquele argumento: "Tudo bem, sem um método os melhores vão ser livres para dizer coisas geniais, mas e quem não é tão bom assim?". Simples: não vão dizer nada. Nem todo mundo precisa ser literato, darling, e o dinheiro do Estado seria melhor utilizado se houvesse menos vagas em pós-graduação e maior preocupação com qualidade e utilidade do que se escreve por lá. Portanto, quem não é intelectualmente privilegiado, que faça outra coisa na vida. Minha mãe, por exemplo, está com dificuldade de achar faxineira. Já deixei um anúncio no mural da faculdade, e ninguém nos procurou ainda. Quem sabe oferecendo almoço, décimo terceiro e VT alguma estudante de literatura feminista não vislumbra aí uma vocação profunda?

domingo, julho 10, 2005

cinco grandes cenas de festa


















- O baile a fantasia em "An American in Paris", de Vincent Minelli, 1951. Porque o figurino é lindíssimo; porque a Leslie Carron também; porque o Vincent Minelli é meu tipo de diretor - o diretor que filme pintando. E porque esta é a última cena antes do grand-finale, mas não perde para ele em beleza.












-A cena da boate em "Kill Bill", de Q. T., lá-ri-rá-ri-rá. Dizimar um exército inteiro como num balé foi peça de antologia.












- "La Notte", de Michelangelo Antonioni, 1961. O filme todo é um festa (o que não quer dizer "alegre", não mesmo). Mas na hora em que personagem da Monica Vitti inventa um jogo bobo no chão quadriculado e todo mundo começa a imitá-la, dá para ver com perfeição o tédio daquelas pessoas. E perceber o quanto um filme sobre uma festa chata pode contrariar expectativas e ser excelente, se o diretor for o Antonioni.












- O baile em "Il Gattopardo", de Luchino Visconti, 1963. Os figurinos, a música, a coreografia; tudo é perfeito. Mas existe alguma coisa nesta cena que não é explicável e que faz dela uma obra-prima. Talvez seja uma melancolia suave que lhe realça a beleza - uma melancolia provavelmente ligada à decadência da aristocracia italiana, classe que o baile simboliza. Ah, shame on me; tentei explicar. Mas a cena é mais forte que essas vulgaridades, e não chega a perder a graça por isso.










-Anita Ekberg dançando rock em "La Dolce Vita", de Frederico Fellini, 1961. É difícil escolher uma grande cena de festa neste filme. Até porque quase todas elas são. Mas quando a Anita Ekberg vai a uma boate e um Elvis Presley macarroni começa a cantar se tremendo todo até cair do palco, entendi como deve ser uma cena de festa perfeita. É que não basta os personagens se divertirem; eles têm de divertir o espectador. E me parece que o Fellini soube fazer isso à merveille - aqui e em dois outros momentos: o banquete na casa de Trimachio em "Satyricon" e o casamento no final de "Amarcord". Ah, e se disserem que Fellini é amaneirado, sim, ele é amaneirado. E por isso mesmo tão bom.

sexta-feira, julho 08, 2005

saudades do bas-fond


"De-lovely", a biografia do Cole Porter, é uma droga. O roteiro é forçado; os atores são sem-graça; a Sheryl Crowl lânguida é convincente como a idéia de um rabanete sexy. Só não é um fiasco completo porque, believe me, um personagem que começa uma festa em Veneza e termina na Riviera Francesa não pode ser totalmente chato, por mais que o diretor se aplique. E além disso precisa de umas oito Alanis Morissettes para destruir "Let's Do It". De resto, "de-sgusting", diria um amigo meu.

Só adorei quando Vivian Green canta "Love for Sale" num bordel masculino. Aquilo é o sonho de qualquer gay que não rebole Beyoncé - os kaloí kaí agathoí do homossexualismo. Primeiro, porque não toca house music, o único grande problema em ser gay dos anos 80 para cá. Para mim, a possiblidade de conhecer um garoto bonito de 18 anos que não tenha cd's com remix house das Destiny's Child é quase tão emocionante quanto descobrir que ele é filho de um industrial rico e quer morar comigo nos alpes franceses. Outro motivo para invejar os gays daquela cena: a presença de marinheiros. E marinheiros de verdade, não aspirantes a cover do Village People. Porque um homem que já se apaixonou por um marinheiro pode levantar uma eterna sombrancelha de superioridade; é mais ou menos como um heterossexual que já dormiu com uma pin-up de calendário - em suma, é alguém que foi pra cama com um clichê, não com uma pessoa (e clichês são inferiores a sensibilidades originais, mas pessoas conseguem ser piores que clichês). Pelo que sei, foi o caso do Cole Porter - o marinheiro, claro, não a pin-up. E não duvido que ele tenha pensado nos pêlos nas costas de um sailor norueguês quando escreveu "For I love all of you...".


Além disso, todo mundo está de smoking. Incrível. Quer dizer, não para a década de 30; mas se hoje em dia o bar Ocidente inteiro estivesse vestido assim, pelo menos as roupas eu deixaria intactas nos meus planos incendiários. Nada pior do que gente que sai de noite com camiseta de jiu-jitsu, por exemplo - gays, então, ficam ridículos. Fico sempre imaginando uma bichinha esmagada por um lutador gigantesco, batendo nele com um tamanco, para se livrar. Claro, existem gays que não são bichinhas, que não fariam isso, lutariam, etc. Mas mesmo esses não têm o direito de sair propagandeando a "Academia do Carlão", como eu já vi por aí, e a volta do smoking resolveria o problema. Além disso, smoking é viril e elegante; vai igualmente muito bem com cocaína e, ham, um pouco de luxúria. (Desculpem a palavra, mas não pude me conter. Se tem um pecado capital gay, é esse. Não só pela prática, mas pela sonoridade. A bichinha lutadora ali de cima reviraria os olhos, exageraria no biquinho do "U" e diria: "Lussssúria", se estivesse lendo este texto.)


Lembrei na hora de outra cena de bas-fond gay. É o prostíbulo que aparece em "Ludwig", aquele filme do Visconti. A câmera vai mostrando os michês, todos com cara de cansados, nos braços uns dos outros. São alemães; têm os tornozelos grossos e estão bêbados de cerveja - not very charming, eu sei. Mas a luz da cena é bonita e me fez ver em algum ponto dos meus 15 anos que não eram só prostitutas que mereciam sonetos simbolistas. Fiz na hora um poema sobre um michê chamado Johnny, poema que felizmente se perdeu. Se não, já estaria compilado em coletâneas GLS ao lado de textos do Caio Fernando Abreu, o que não me põe um sorriso nos lábios. Quer dizer, se eu ganhasse algum por isso, tudo bem; o soneto era sobre um prostituto mesmo.

quarta-feira, julho 06, 2005

algumas máximas


- Um homem baixo vê uma paixão elevada como um homem míope vê uma águia no céu: ou ele a vê como algo muito acima, ou simplesmente não a vê.

- Todas as formas de maldade são perigosas. É por isso que as maiores são as que mais valem a pena.

- Quem tem o gosto amplo demais geralmente não tem nenhum.

- Em sociedade, a bondade é a gentileza e a gentileza é a hipocrisia. Logo.

- A ética é o cansaço da estética - e nós só nos preocupamos com os soldados de Aquiles quando a Ilíada nos causa sono. O que faz da academia um enorme dormitório público, e da crítica sociológica um longo bocejo.


- Uma paixão elevada vê um homem baixo como uma águia no céu vê um homem míope: como não mais que uma cara franzida. E mesmo assim ela pousa no seu braço e se deixa ficar - por não saber, num caso, o que é miopia, e no outro, o que é baixeza.

domingo, julho 03, 2005

I, Tiresias, old man with wrinkled female breasts














Durante 12 horas por dia, ele é um pacato apresentador de boring shows, eternamente chocado com idéias assépticas de cantoras pop que fazem xixi no banho. Vem a noite, porém; o pingulim evagina, crescem nele fios de peruca branca, brota-lhe um par de tetinhas murchas, e as últimas 12 horas do dia ele passa como aquela velhinha pimpona que ensina posições sexuais com Comandos em Ação e dá conselhos sobre hímen complacente para gays em grande ansiedade.


Ninguém tinha se dado conta até agora. Mas a boquinha, ah, a boquinha entrega tudo. E a falha entre os dentes também.


(Na verdade, este post é motivado mais por Tirésias que por Sue Johanson ou David Letterman - o que me dá um álibi para este faux pas. É que Tirésias foi um personagem fundamental na minha vida; vi uma imagem num livro de história aos seis anos, e desde então a idéia de um velho com tetas me assusta. Olho para todos quando entro no ônibus, bem para a altura do peito, e já tive algumas surpresas. Além disso, a cantada mais bizarra que recebi foi inspirada nele. Era uma aula de mitologia clássica; a professora falava pela oitava vez no mito de Tirésias; eu já tinha descascado a parede inteira e, quando ela falou que o adivinho grego alternava entre os dois sexos durante o ano, um colega que estava sentado do meu lado suspirou: "Ah, este realizou o meu sonho!", e me olhou com uns olhos de macaca. Enrubeci. Mas não deixei de apertar-lhe os dois mamilos, e com força)


sexta-feira, julho 01, 2005

what is this thing called love?


-Mas eu gosto do Cole Porter; só acho que pessoas enjoam dele falando de amor o tempo todo.

Mas as pessoas não se cansam do Cole Porter exatamente porque ele fala de amor o tempo todo. Ok, quase o tempo todo. O fato é que amor é o tema perfeito para fazer canção popular - mais ainda para grande canção popular, como era o caso. É comum o suficiente para que todo mundo "se identifique" (e Madame Krawitz olha com reprovação); ao mesmo tempo, demanda uma sensibilidade um pouco mais refinada que jogo de truco e baile do chope. Se eu fosse de esquerda e não tivesse diabetes, diria que é um dos poucos sentimentos a um só tempo elevados e democráticos: qualquer um tem acesso a ele (ainda que geralmente só a ele). Afinal, mesmo um mulher medíocre, uma Emma Bovary, entende o amor, e é superior a toda uma Ionville de pedantes e burocratas, só por ter e ver "se despedaçarem seus romances 'Amiga'", como dizia o Paulo Francis. Também a secretária do meu pai, insuportavelmente (para os outros) apaixonada pelo ex-namorado, pode ter muito de Fafá de Belém, mas não deixa de ter um quê de Fedra, se a gente olha com bondade. E é porque o amor é tão comum, mas também tão fora do comum, que o Cole Porter - e também o Irving Berlin e o Jacques Brel e os Gershwin* - pôde falar dele assim, dum jeito compreensível, sem rebuscamentos, mas belíssimo: "one of those bells that now and then ring", por exemplo; um dos versos nos quais eu não veria problema de ouvir pelo resto da eternidade, cantados assim, com a voz meio cínica, pela Ella Fitzgerald.


*Dizem que as letras do Ira Gershwin eram fracas. Talvez; diferentes do Cole Porter, as letras do Ira só faziam sentido com a melodia. "You and you alone / Bring out the gipsy in me" assim, sem música, pode parecer versão em inglês de hit do Sidney Magal; com a melodia do George, entretanto, é uma bênção para os amantes felizes - e um castigo para os brokenhearted.