sábado, novembro 26, 2005

quatro pontos de lingüística no lábio inferior


Era quase meia-noite e eu me divertindo na academia, quando estoura um gancho no meu aparelho, o cabo de aço salta pra longe, e a barra que eu puxava tem a descortesia de me vir direto na boca sem nem perguntar meu nome ou me pagar um Martini - também, com aqueles mais de 30 quilos, o programa não saía por menos de 60R$. De qualquer jeito, tudo muito engraçado; finalmente consegui cantar "Bela Lugosi's Dead" com a boca empapada de sangue. Só o embaraçoso de depois, ser costurado sob uma burca hospitalar enquanto George Michael canta "Careless Whisper" em som ambiental de enfermaria is not my idea of heaven. E agora esses pontos no lábio! - coisa mais Billy Idol.

Por isso estou brabo, muito brabo com qualquer coisa que tenha mais de trinta quilos - uma kombi, um mamute, você, a humanidade inteira (ok, ok, menos os somalianos); vejam!: estou olhando para a câmera debaixo pra cima, tremendo o lado direito do meu beiço como Elvis em filme no Havaí.

E quando fico brabo, muito brabo, tenho vontade de falar em lingüística. É inexplicável; meu irmão come sozinho minha caixa de Ferrero Rocher, e saio por aí bufando, mostrando meu pinto tatuado com análises sintáticas de frases de Proust - e não, não, isso não é propaganda da minha percussion and drums.

O fato é que estou relendo alguma coisa de filosofia da linguagem. Perigoso para quem escreve se preocupar demais com o que é a linguagem - palhaço que pesquisa a etimologia de "marmelada", de "carequinha", acaba ficando corcunda e sem-graça -, mas è divertente, e além disso, bonito. Ciência que usa metáfora em vez de fórmula matemática perde em precisão, mas pelo menos mantém um certo charme e não carrega celular no cinto.

A teoria clássica sobre linguagem, por exemplo, é conhecida como teoria do conduto. É como se a linguagem fosse de fato um conduto em que as palavras, pacotinhos de significado, transferem conteúdos mentais de uma cabeça para outra. E se acontece algum mal-entendido, a culpa é de um dos dois: ou do emissor, que não soube fazer o pacote direito, ou do receptor, que rasgou o embrulho da Sandiz com os dentes e danificou a Base Cobra dos Comandos em Ação, sem direito a troca.

Mas como o tique mental em ciências humanas nos últimos tempos é criticar essas noções autoritárias de erro e mal-entendido, surgiu uma metáfora ainda mais engenhosa para combater a do conduto. É como se cada um estivesse encerrado no seu mundo mental, e a linguagem servisse para deixar sinais do que se passa no nosso interior - mas sem transferência de conteúdos mentais. A imagem é bonita, vejam só: cada um de nós está sozinho num ambiente que só tem um elemento: terra, água, grama, milhopã. A única maneira de trocarmos informações é um pequeno buraco na parede, que nos comunica com o nosso vizinho, e através do qual podemos passar papéis. Certo dia, um de nós - sei lá, o do milhopã - inventa um aspirador de salgadinhos ruins. Ele decide passar a invenção adiante. Então, escreve as instruções num papel e passa pro vizinho ao lado - o sujeito que vive numa selva de samambaia. Ora, esse não conhece milhopã, só conhece samambaia. Mas acontece que piolhos invadiram aquela selva de sala de avó, e ele interpreta o coletor de salgadinho-isopor como uma maquininha de dar eletrochoque em piolho de samambaia. Vai lá e faz o seu próprio aparelhinho, mas baseado nas instruções do outro. Feliz com o sucesso, ele passa o invento para o próximo vizinho - o habitante do mundo do chá de coca, que anda às voltas com uma invasão de traficantes colombianos. Portanto, logo a maquininha de eletrochoque em piolho de samambaia vira uma cadeira elétrica para cartelista bigodudo, para logo após virar um triturador de pézinhos infantis, um masturbador felostático Walita.

Enfim, estamos todos presos no nosso mundo mental; comunicação completa não é possível, e só nos resta mandar para os outros sinais do que eles nunca vão saber, e do que nunca vamos saber o quanto eles realmente sabem - tudo que está atrás da barreira dos dentes, homericamente falando.

Concordo com a metáfora - não sei se porque é verdadeira, se porque é bonita, ou se porque todo mundo que fez duas ou três cadeiras duma disciplina acaba relacionando a verdade de uma teoria com a distância que ela toma do senso comum. O fato é que tem quem viva em ambientes onde quase tudo é art déco e comestível e lembra Ginger Rogers; tem quem viva em grandes salões vazios, sem música e sem comida e com lâminas de pedagogas em retroprojetor; tem também quem viva num quartinho de pensão, com restos de pizza mofada no carpete, ouvindo Van Halen e com posters de Yoná Magalhães nua na parede. E quando um bilhetinho de 300 páginas vindo de um escritor sobre "como é a vida" chega pelo buraco na parede, as impresões variam do entusiasmo à anodia, conforme o ambiente mental. As do cara da Yoná Magalhães, por exemplo, são de que Lucien de Rubempré era veado e de que Bentinho só podia ser corno manso mesmo. Não que sejam impressões ruins - mas tem jeitos mais art déco de dizê-las.

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Muito hilário seu texto, há apenas algumas "coisinhas" a respeito da filosofia da linguagem e sua "precisão". Veja você mesmo: uma das questões mais importantes do discurso, e, por isso mesmo, objeto da filosofia da linguagem, é o caso da não-contradição. Há verdades latentes neste princípio, pois, a fala que nega e afirma a um só tempo corre o risco de aniquilar-se no próprio ato de se efetivar enquanto palavra dita. Mas logra justamente isso: sem deixar de ser fala, no caso de Édipo, por exemplo, presentifica-o seres excludentes como filho e marido, pai e irmão. Não há, com efeito, palavra que diga aquele que é, a um tempo, filho e marido, porque afirmar um supõe negar o outro. Em Édipo, contudo, a ambigüidade se expressa em seu grau maior, e o excludente converge e afirma no próprio ato de negar. o Mito rompe com a rigidez da linguagem, instituindo a palavra totalizadora capaz de nomear o inominável, ou seja, aquele que é a um só tempo filho/marido, pai/irmão, juiz/réu, herói/crápula. Resumidamente podemos afirmar que a contradição é a mais dionisíacas das personagens apolíneas. Ela significa a própria dilaceração do discurso, pois cria um mundo maior que suas possibilidades. Em última análise, coloca em xeque o critério básico de todo o discurso - o afirmar e o negar como excludentes. Sendo assim, a própria análise da forma lógica da linguagem é a análise da estrutura do pensamento. Há rigorismo científico maior do que esse?

1:06 PM  
Blogger rodrigo de lemos said...

well, acho que não era exatamente ao Sagrado Princípio da Não-Contradição que eu me referia, mr. anonymous, mas às teorias que eu citei - essas que tentam explicar COM metáforas, ao invés de usar metáforas para ILUSTRAR explicações. mais ou menos como marxismo e psicanálise e auto-ajuda.

mas notei no teu texto um elogio ao rigor científico ou será que eu vi um gatinho? nada contra, só que quando me falam em rigor científico eu bocejo tão alto.

beijo

6:27 AM  

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