segunda-feira, agosto 29, 2005

"ih, lá vem a Arte Profunda de novo!"


A Arte Profunda era uma criança solitária. Na hora do recreio, ela comia a merenda sozinha, mamando uma garrafinha de Yakult morno enquanto as outras crianças jogavam nilcon. E andava melancolicamente de balanço, e se perdia num olhar de devaneio para o horizonte, imaginando mil maneiras de eliminar aqueles coleguinhas insolentes exatemente como o seu estômago digeria agora hordas e hordas de lactobacilos vivos bons no handebol.

Ela bem que tentava se entrosar com a exculsivíssima aristocracia da turma 120. Mas era pedir para entrar no time que as coleguinhas se entreolhavam, revirando os olhinhos precocemente maquiados: "Ih, lá vem a Arte Profunda de novo!". E ela acabava ficando fora da quadra, de gandula.

Até o dia em que a Arte Profunda descobriu um livrinho precioso na biblioteca da escola. "O que é o existencialismo?", coleção Primeiros Passos, sob caixas e caixas de moletons Hard Rock Café-Orlando para a Campanha do Agasálio. Uma revelação. Foi ler o primeiro parágrafo, e a Arte profunda sentiu o chão trepidar e a Máquina do Mundo se abrindo para ela, e a Máquina do Mundo era caolha, fumava cachimbo e não tomava banho - e tinha escrito parágrafos ilegíveis em "O Ser e o Nada". "Oh, ela é tão profunda!", pensou a Arte Profunda. Mas a Máquina do Mundo era também muito feia, segundo me consta.

Foi neste dia que a Arte Profunda começou a pintar. Cada camada de drop-painting que ela lançava sobre a tela era um lactobacilo aristocrata e bom de handebol a mais que ela simbolicamente aniquilava no seu estômago neo-expressionista.

Anos mais tarde, ao inaugurar uma exposição individual no Centro Georges Pompidou, a Arte Profunda revelou às ávidas câmeras da tv francesa: " Foi naquele dia que eu entendi a minha função como artista. Nomear o Inomeável, dar Voz aos Excluídos, apreender o Mundo na sua Totalidade... Beleza é coisa pra quem joga nilcon." E ela se sentiu vingada dos coleguinhas insolentes ao dar este touché em plena TV5 - sendo que esses não sabiam nem o que era TV5, nem o que era o Centro Pompidou.

Atualmente, as obras imortais da Arte Profunda são estudadas por eruditos do mundo inteiro. Só por eles, é claro; mas a série "Olhares sobre o Mundo Contemporâneo", por exemplo, deu origem a mais de 5 linhas de pesquisa em universidades latino-americanas, as quais se dedicam a estudar suas 28 litogravuras em latinhas de óleo Soya sob a Perspectiva feminista, a Perspectiva adorniana, a Perspectiva de Foucault. E assim a Arte Profunda virou a musa do filisteísmo inteligente, do filisteísmo chic.

Entretanto Tavinho Tavalera, o colega bichinha da Arte Profunda naqueles dias de Yakult, virou designer da Rosa Chá. Condenado a desenhar eternamente biquinis com "motivos locais" - ou seja, biquinis com miçangas - ele não teve o nome imortalizado por teses sobre "A influência da caatinga na obra de Tavinho Tavalera" ou "Do lixo ao luxo: percursos da moda brasileira no mercado intrenacional". Não que ele não merecesse; ao menos Tavinho conhecia a formação das cores melhor do que a Arte Profunda. Mas os professores da Universidade Federal da Filistéia declararam sumariamente que "as suas roupas pode até ser bonitas, mas falta-lhes profundidade" - exatamente como letras de Gershwin e livros de Wodehouse. O imperialismo acadêmico da UFF é um dos poucos imperialismos que não conhecem fronteiras entre Primeiro e Terceiro Mundo.

Ao menos, Tavinho Tavalera conseguiu dar o troco à aristocracia da turma 120. Vestia as mulheres do seus ex-colegas, aqueles que não assistiam à TV5. E cobrava delas 25% acima do preço normal. "Isso é por não terem me escolhido pro nilcon", jusitificava para si mesmo. Enfim, o mesmo objetivo da Arte Profunda, só que com uma estratégia mais eficiente.

domingo, agosto 28, 2005

soberba e dependência química


Só se vicia em drogas quem sofre de humildade crônica. Um ego inflado por um elogio certeiro é muito mais estimulante que cocaína ou ecstasy. E olha que estamos falando de ecstasy, ecstasy, criaturas.

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Mas tem de ser o elogio certo da pessoa certa. A diferença que existe entre um "Nossa, como você escreve bem!" vindo de gente que também escreve e um "Nossa, como você escreve bem!" vindo de qualquer um é exatamente a mesma que existe entre um Garuda indonésio ultra-opiácio e um Pilha fabricado num quintal de Florianópolis. Mas, claro, gente que escreve bem jamais escreveria "Nossa". E nem usaria ponto de exclamação.


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E não me falem em maconha. Que maconha não tem problema; que maconha não vicia. É exatamente por isso que maconha é a droga dos humildes. Maconha dá nojinho.

sexta-feira, agosto 26, 2005

this is what this blog is all about


"Não creio que, sob o ponto de vista da civilização e da felicidade humana, tenha havido na história da humanidade invenções mais significativas, mais vitalmente importantes, e de maior contribuição para o gozo do lazer, da amizade, da sociabilidade e da conversação do que as invenções de fumar, de beber e de tomar chá. As três têm várias características em comum: antes de tudo, contribuem para a nossa sociabilidade; em segundo lugar, não nos enchem o estômago, como a comida, e por seguinte podem ser gozadas entre as refeições; em terceiro lugar, podem as três ser gozadas através do nariz, porque atuam sobre o nosso sentido do olfato. Tão grande é a sua influência sobre a civilização, que temos vagões de fumar e vagões restaurantes, e bares e casas de chá. Se lhe tirarmos o elemento da sociabilidade, essas coisas perdem a significação. O gozo delas, como o gozo da lua, da neve e das flores, deve ser desfrutado em companhia adequada, pois esta é a condição em que insitem os artistas da vida na China; certos tipos de flores devem ser gozadas com certo tipo de pessoas, certos tipos de cenários deve estar associada a certos tipos de mulheres; o rúído das gotas da chuva devem ser gozado, se o quisermos em sua plenitude, quando se está estirado numa esteira de bambu, em um templo perdido nas montanhas, e num dia de verão; em suma, o gosto é o que importa, e há um gosto peculiar a tudo, e uma companhia imprópria pode estragar inteiramente o mais belo estado d'alma.

(...)

Casto de espírito, tranqüilo de ânimo e em adequada companhia, fica-se apto a gozar do chá. Porque o chá foi inventado para as companhias tranqüilas, como foi inventado o vinho para as festas ruidosas. Há algo no chá que nos conduz a um mundo de calma contemplação da vida; seria desastroso beber chá enquanto em torno choram crianças, ou com mulheres de voz forte, ou homens que falam de política. (...)"

(Do chá e da amizade, Lin Yutang,1895-1976)

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Agradeço ao Breno, do Farmer in the Big City (ali, ali ao lado, nos links), que curvou as costas noite após noite, colhendo folhinhas de chá numa colina próxima a Jiangnan e digitando esta preciosidade em times new roman e espaço 1,5. Breno, a very gentle bird - e, logo, ótima companhia para um chá. Convidado para um.

Ah, e lembrem-se de Mr. Yutang: nada de criança chorona, Maria Machadão ou CPI-do-god-knows-what enquanto lerem este blog! Jamais! Sejam, por favor, uma "companhia adeqüada".

quarta-feira, agosto 24, 2005

coulanges, mme. de sévigné e la rochefoucauld


Photo by Hiroshi Kitano,Versailles, 1672.

terça-feira, agosto 23, 2005

carta CLV de mme de sevigné: relato de um dia em versailles para sua filha, mme. de grignan


Ma chère bonne,

Desculpe, mas ainda não li sua correspondência. Na verdade, creio que ela não chegou, e por minha culpa; ontem, passei exatamente 53 minutos sem abrir meu hotmail, o que fez a caixa estourar com spams indecentes oferecendo pílulas de orgasmo e halteres para alargamento peniano. Já bloqueei 35 Lolita Pills e 24 Long Dong Silvers, mas eles continuam aparecendo como ratos em roupa suja.

Hoje passei o dia em Versailles. Fomos eu, Coulanges, e o conde de Bussy-Rabutin. Devo dizer que foi um dia dos mais agradáveis, apesar dos percalços do caminho. Em plena Place de la République, um bando de rappers tunisianos levou a carteira de Coulanges. Bussy-Rabutin correu atrás deles para recuperá-la, mas parece que depois da lambada o populacho parisiense ficou mais malemolente. Os negrinhos subiam em postes, davam cambalhotas em cestas de frutas, saltavam carruagens em movimento. Além disso, os saltos do conde impediam que ele os alcançasse; já adverti ao Rei de que a moda do salto alto ainda vai acabar com o temor do petit-peuple pela nobreza, mas até agora nenhum decreto foi baixado. De qualquer maneira, no fim de um beco os tunisianos desapareceram por um buraco na parede, provavelmente um erro de cáclulo; não contei até cinco para eles descobrirem tratar-se de uma toca de camudongos e começarem a gritar deseperadamente por ajuda em alguma língua que eles supunham ser francês. Temo que o dinheiro do pobre Coulanges tenha sido roído com eles - o que o deixou inconsolável. Estava triste pela carteira, triste pelo dinheiro, e sem um sous. Tive de gastar mais de 3 euros comprando tickets para mim e para ele no metrô; enfim, outra despesa que não estava nas minhas contas, mas por uma amizade faço qualquer sacrifício.

O metrô também não foi uma experiência das mais agradáveis. Primeiro, entalei meu vestido num daqueles bancos estreitos; foi preciso três chaves de fenda e um encanador polonês para entortar a armação do corselet. Depois, tivemos de suportar durante a viagem inteira um grupo de jazzistas cegos tocando "Take Five". Já falei ao Rei sobre cegos tocando "Take Five" no metrô; sinalizei o mal para a saúde pública que este hábito repetitivamente bárbaro representa; discursei sobre o desconforto de encontrar por toda parte gente com óculos escuros tão hediondos. Ele, entretanto, prestou pouca atenção; com mais de trinta anos, o Rei ainda adora longos solos de bateria. É no que dá ter ouvido Led Zeppelin demais na adolescência; suspeito que Ana da Áustria reservou o pulso firme somente para o Parlamento.

Por fim, chegamos a Versailles. E como o palácio está diferente da útlima vez que você o viu! Aonde quer que se vá, sente-se uma alegria de máquina digital e de pézinho gordo em sandália; Madame me disse que esse é o lado bom de cobrar 10 euros a entrada. O próprio Rei estava diferente, mais falastrão - e você pode imaginar o quanto isso surpreende num homem tão lacônico como ele. Às 11 horas o huissier anunciou a sua aparição; o Rei saudou os convidados meramente com um aceno, e foi mais pródigo que de costume durante a refeição. Depois do licor e dos queijos, chegou mesmo a tomar emprestado o leque de Mme. de Lauzan e ensaiar alguns passos à Locomia, no que foi acompanhado pelos ministros. Não me divirto tanto desde o último baile de máscaras. Hà rumores de que que toda esta alegria seja em função do projeto Disney-Versailles para os bosques o palácio; acredito, contudo, tratar-se de uma nova favorita, depois da desgraça e reclusão de la Vallière. Enfim, tutto molto divertente.

Após o almoço, fomos caminhar pelo parque. Encontramos no caminho La Rochefoucauld. Sempre muito gentil, nosso amigo pediu notícias suas e de M. de Grignan enquanto lambuzava o bigode numa maçã-do-amor. Infelizmente, não conseguimos conversar por muito tempo; um grupo de turistas asiáticos pediu para tirarmos fotos abraçados; fomos perseguidos por cerca de 25 criançinhas japonesas ao longo das aléias do jardim, e tivemos que nos esconder num canteiro próximo ao Trianon para escaparmos dos pequenos selvagens. Parece que o guia nos denunciou ao gerente, dizendo que na Disney-Orlando os Mickeys não saem correndo de fotos para excursões; por isso, tomamos uma séria advertência e nos ameaçaram com uma temível demissão do nosso honorável posto de décor vivant. No entanto, apesar do incidente desagradável, tivemos momentos dos mais prazerosos. Ficamos a tarde inteira jogando truco no pier que construíram sobre o canal e no fim do dia andamos nos pedalinhos temáticos que instalaram na fonte de Latona; Bussy e la Rochefoucauld ficaram com um Richelieu sorridente, mas Coulanges e eu conseguimos um Luís XIII. Todavia, um pouco depois da cinco horas, tivemos de voltar a Paris; o pobre Coulanges reclamava estar cansado; acredito, entretanto, em outros motivos: a ingestão abusiva de algodão-doce ainda vai levar meu primo para os braços de Deus.

Cheguei há pouco em casa. Depois de um dia tão agitado, somente agora achei tempo e forças para escrever para você, minha filha querida. A saudade me consome a cada hora; não acho distração em coisa alguma; a todo instante me vêm ao espírito as cenas do seu casamento e de sua partida. Espero que M. de Grignan esteja desempenhando bem o papel de marido; ao menos isso justificaria o fato de ele ter levado você para tão longe de mim. Mas paro por aqui; o tamanho das minhas cartas deve estar lhe matando. Até mais, minha querida.

Je vous embrasse avec tendresse,

Votre mère

ps: Lembranças minhas para o seu marido. Aquele maldito sodomita.

domingo, agosto 21, 2005


Winter kept us warm


Covering earth in forgetfull snow


Feeding a little life with dried tubers.



quinta-feira, agosto 18, 2005

o século de pênicles


Porque a Grécia Antiga era uma boate gay em que todos os homens eram hetero e disponíveis.


1) chegada da ptonisa no palco ao som de "Finally";


2) depois de aspirar 1 grama de contato com Apolo, a sacerdotisa revela oráculos sentimentais para gordinhos em êxtase na platéia. Esta parte do rito conta ainda com distribuição de ingressos para saunas VIP e dublagem de "Hot Stuff", em fantasia Kentucky Fried Chicken;


3) momento alto do ritual: a epifania de uma divindade olímpica. Pela mistura nada helênica de botas de couro com cueca Zorba três números menores, provavelmente uma de baixa hierarquia no Olimpo. "E portanto uns 10 reais a hora", especulam alguns historiadores;


4) finalmente, a atração mais esperada, o show do "Efebo Molhado". A este inspirador hábito da cultura grega devemos diversas odes anacreônticas e a célebre afirmação platônica de que se não houvessem efebos se ensaboando em público por toda a Hélade, não haveria inspiração possível para os filósofos. Uma frase que indica claramente a modernidade clubber de Platão; afinal, ele também achava que "o que importa é cada um curtir na sua, sacou?"



terça-feira, agosto 16, 2005

sobre como manter a dignidade ao som de scorpions


Uma boa maneira de não perder a dignidade ao ser abandonado é lembrar de "Still Loving You", dos Scorpions. Lembrar que gente abandonada se arrepia ao som de "Still Loving You", dos Scorpions. Melhor ainda: seu marido deixando o quarto, e você, leitora amiga, chorando de costas na porta, escorregando devagarinho até ficar de cócoras no chão, com o rosto todo borrado de batom e resquícios de uísque nacional, enquanto começa de fundo aquela voz embevecida:

Time, it needs time
To win back your love again
I will be there, I will be there


Você está em algum ponto entre Janete Clair e Glória Peres. Irrompe pela janela do seu quarto um iluminador; um microfone fálico vem parar na sua boca, e de dentro do armário desabrocha Jorginho Fernando, incontido numa miniblusa de lycra, estalando os dedinhos fartos e fazendo gestos de empolgação : "Torce mais a boca pra chorar, minha filha! Quero ver o personagem! Quero ver mais emoção!". E a música aumenta:

If we’d go again
All the way from the start
I would try to change
The things that killed our love
Your pride has built a wall, so strong
That I can’t get through
Is there really no chance
To start once again
I’m still loving you

E por mais que você saiba que o seu marido não vai voltar, que ele fechando a porta foi a parte séria da novela, você pára de chorar. Isso se tiver um fração da dignidade que vale a pena manter. Porque qualquer pessoa que não veja nada de errado em fazer cenas de auto-piedade dirigidas por Jorginho Fernando, e ao som de "Still Loving You", dos Scorpions, não merece da vida muito mais que duas ou três linhas escritas por Gilberto Braga. Claro, talvez a maioria não tenha problema nenhum com lágrimas e baladas-de-amor-com-muito-teclado, já que assiste a cenas assim todo dia, lá pelas oito horas. Mas você, leitora amiga, você não é nenhuma Sade-love's-stronger-than-pride, não é mesmo?

E se "Still Loving You" não funcionar? Tente "Mordida de Amor", do Yahoo. "Atrás da Porta" eu recomendo só para os casos mais extremos - para os casos que envolvem objetos quebrados e tentativas de suicídio. O núcleo "botequim" da novela.

quarta-feira, agosto 10, 2005

meu momento hugh selwyn mauberly


É frustrante escrever poesia. Basicamente porque "anything, anything can go." Os Fields Brothers dizem que a grande contribuição deles para a literatura foi a de terem deixado a poesia mais difícil de escrever. Então não houve grande contribuição nenhuma. A poesia é uma arte rolando ladeira abaixo, e é tão triste saber que depois da queda nem os joelhos da coitada vão prestar.


(Desculpem; desculpem; sempre acordo apocalíptico quando janto muito tarde).

Mas é que nunca foi tão fácil escrever poesia como agora. Escreva n'importe quoi e tenha certeza de que um crítico pós-moderno qualquer vai vir com algum conceito esdrúxulo, inspirado, sei eu, em leis da termodinâmica, para dizer que o seu poema é bom. Aliás, bom não; interessante, epistemologicamente interessante. A nossa época acha qualquer tipo de julgamento tão cruel que mesmo em arte as pessoas só usam palavras assépticas.

É por isso que é tão bom saber que um poeta contemporâneo escreve assim:

MÁQUINAS

Se - máquinas precisas
que somos de morrer -
nossa função implica
memória ininterrupta,

por que, afinal, possuis
(lubrificadamente
contrátil entre as pernas)
o teu lagar de amnésia?

(Mr. Nelson Ascher)

sábado, agosto 06, 2005

o povo que vive sob a minha pia-máter


Sou facilmente divertível. Sou, na verdade, auto-divertível. Tenho um pequeno estoque de imagens na minha cabeça que me salvam de qualquer tarde de domingo.

Na verdade, não são bem imagens, são personagens que invento. Ou melhor, tipos. É isso, são tipos que me vêm à cabeça quando uma fila, um ônibus ou uma sala-de-espera põem à prova o meu amor à vida. E depois eu não entendo por que as pessoas ao meu lado acham que estou rindo delas, vejam só que mistério.

Adoro carreiristas, por exemplo. Mulheres carreiristas. São sempre loiras, têm peitos enormes, estão excessivamente maquiadas e invariavelmente dispostas a fazer tudo para estrelar um daqueles shows cafonas de Las Vegas. Picotam os vestidos umas das outras no camarim. Quebram os saltos das sandálias para a colega cair na escada. E colocam soda cáustica na tintura de cabelo da dançarina principal para deixá-la careca um dia antes do espetáculo. Enfim, algumas lições de baranguice que se pode tirar de filmes educativos como "Showgirls". Até já escrevi um post sobre ele, explorando as semelhanças entre as vagabas do filme e alguns blogueiros desesperados por publicidade.

Velhas lascivas também são ótimas. Velhas, não: senhoras de 45, 50 anos. Vejo elas em boates enfumaçadas, vestidas com botas e biquinis de couro, fazendo gestos de felinos sensuais com as mãos meio crispadas enquanto dançam "Strangelove" dentro de jaulas. Quando elas começam a tirar a roupa eu quase sempre troco de cena; se de fato existe uma linha tênue entre a bizarrice e o mal-gosto completo, não sou eu quem vai até lá comprovar. Mas ainda contrato umas dessas para dançar no meu próximos aniversário, junto com uma trupe de anões sado-masoquistas, como garçons.

Mas secretárias são melhores. Claro, não quaisquer secretárias: secretárias carentes emocionalmente. Daquelas que se deixam levar a motéis baratos pelo chefe. No geral, logo na primeira hora elas se embebedam com Espumante Peterlongo; ficam só de meia-calça e lingerie em cima da cama, e contraem-se de forma insinuante ao som de "Carelesse Whisper", do Wham, pondo em prática passinhos 1-pra-lá-1-pra-cá aprendidos com afinco durante meses em cursos de strip-tease. Depois, quando os dois estão de cabelo molhado, saindo do motel, o chefe diz nunca ter conhecido uma pessoa "tão especial" (desde que dia do mês passado ele não especifica), e que vai deixar a esposa por ela. O que gera anos e anos de enrolação para a pobre secretária. Mas aí a história fica trágica, e sou forçado a trocar de cena também, porque não gosto de ver ninguém sofrer, que bonzinho sou eu.

No fim, o que eu acho realmente engraçado nessa história é a carência emocional da secretária. Ou a carência emocional da mulher, em geral. Mulheres carentes e assemelhados são sempre, sempre muito engraçados - os olhinhos revirados, pensando na pessoa amada (ou na falta de), enquanto abraçam ursinhos de camelô que têm um "I love you" bordado na barriga. São engraçados e meio bobinhos também. Só é obcecado pelo amor quem nunca leu um livro decente na vida.

E esse é o povo que vive sob a minha pia-máter. Tem mais; tem mais; muito mais. Mas escolhi só as mulheres para agradar uma eventual leitora feminista. Espero que goste do chá, querida.

quarta-feira, agosto 03, 2005

algumas oposições clássicas, para não dizer clichês


Corneille/Racine:

Corneille. Por causa do nome. Corneille é mais sonoro, mais charmosamente arcaico que Racine. É menos botânico também.

Também gosto mais dos versos dele. O que é um detalhe irrelevante: Corneille, Corneille, Corneille.

Claro, Racine era melhor tragediógrafo. As ações são mais concisas; os personagens têm mais nuances, e nem Fedra, nem Nero ou Agamenon podem ser resumidos numa fala, como acontece tão freqüentemente em Corneille. Também tem quem prefira Racine como poeta; dizem que seus versos são mais naturais, menos eloqüentes. É verdade. A eloqüência de Corneille às vezes deixa os recitativos um pouco balofos. Mas Corneille era mais witty, e tinha o dom de sintetizar o drama de uma peça em dois ou três versos. Essas sínteses, tão artificiais, tão obviamente cherchées, eram o que ele fazia de melhor, e compensavam o excesso de retórica.

E ainda esse nome: Corneille, Corneille.

Garbo/Dietrich:

Dietrich. Quer dizer, não que haja entre as duas a fenda cheia de Gremlins canibais que separa uma Audrey Hepburn de uma Rita Hayworth. Ambas eram germânicas, belíssimias, inteligentes e, o melhor, não falavam bem de mulher. Mas Garbo não tocava violino, não sabia Goethe de cor. E eu passaria a vida casado com uma mulher que tocasse violino, recitasse poesia em línguas que eu não entendo e tivesse as pernas de Dietrich - desde que, claro, tivesse também a tolerância de uma Linda Porter. Mas e se Garbo também fosse violinista e soubesse Goethe de cor? Eu continuaria com Dietrich. I'm stubborn.

Pound/Eliot:


Eliot, claro. Simpatizo com Pound, principalmente a crítica. Mas ele não escreveu o "Prufrock"; nunca atingiu a perfeição de versos como "The dead tree gives no shelter; the cricket no relief"; e, o melhor, não ia a festas maquiado como um ator shakespeariano. Além disso existe alguma coisa de vulgarmente físico no Pound, e que está sublimado em Eliot. Claro, Eliot teve de pagar sexualmente por esse refinamento. Mas é só comparar os dois recitando, o estilo bruto do primeiro com a sutileza do segundo, para concluir que compensou.

Enfim, Eliot era um miglior fabro. Eliot era melhor, seguindo critérios poundianos.

Nescau/Ovomaltine: ...

Le Corbusier/Frank Lloyd Wright: Mies van der Rohe. Mais chic que o primeiro; mais conciso que o segundo. Mas Le Corbusier é incrível.

Chico Buarque/Caetando Veloso: Come on! Ovomaltine, é claro.

Clássico/moderno: Se isto fosse vinheta para programa descolado no GNT, diria "Clássico moderno", me achando espertíssimo. Quem sabe até ganhasse um biscoito Scooby. Mas como não é o caso, respondo: "Sabe Mies van der Rohe? Pois é..." Mies van der Rohe é o meu ideal de elegância contemporânea, se é que uma coisa assim de fato existe. E isso exatamente por ter sido classicista, sutilmente classicista. Por isso, meu conselho de leito-de-morte às gerações vindouras: Componham como Mies van der Rohe. Bolgueiem como Mies van der Rohe. Comprem roupas como Mies van der Rohe. (Só não tentem projetar como Mies van der Rohe, que geralmente não funciona.)

segunda-feira, agosto 01, 2005

vogue!


Não, não é que eu ache que tudo é pose. Claro que existe a naturalidade. O reflexo de tirar a mão de uma chapa quente. As pulsões sexuais. A tendência a contrair feiamente os músculos do rosto na tristeza, e um pouco menos feiamente na alegria.

O problema é que o natural é vulgar. Tudo quanto nivela Paul Valéry com a costureira da sua mãe só pode funcionar como um apesar de no espírito humano. Tanto que nos elogios existe sempre a elipse de um apesar de e um fenômeno natural: "Paul Valéry foi um grande poeta (apesar de digerir alimentos com suco gástrico)"; "Aquele industrial é um homem generoso (apesar de ter glândulas sudoríparas ativas)"; "Claudia Peirucchi tem muito, mas muito bom gosto para festas (apesar da lubrificação vaginal)".

Porque é a pose que quebra a monotonia dos atributos darwinisticamente herdados. É a pose que faz deles algo mais que mecanismo de sobrevivência. Se os músculos do meu rosto quase nunca se contraem feiamente na alegria e na tristeza, estou posando ou de modelo ou de estóico. Se por prazer controlo um reflexo não-condicionado e deixo minha mão na chapa quente, assumo o personagem de masoquista; se caço na rua blogueirinhos de 15 anos para fazer hot-dogs com seus dedos na mesma chapa, poso de sádico (e de bem-feitor da blogosfera, pra alguns). São as poses os verdadeiros antípodas da natureza; são as poses que marcam o início da civilização. E atenção, atenção para o aforismo (já deixo entre aspas, para poupar o seu trabalho ao copiar e mandar entusiasticamente para seus amigos do Orkut): "A relação pose X naturalidade é a relação cru X cozido de quem detesta Lévi-Strauss." (Oh! Lindo! Lindo!)


Meu Deus, só secreto tanta sabedoria para ela não empedrar nos rins.