por que livros?
Primeiro: porque cidades são feias. Cidades são aquele tipo de coisa que tem um conceito maravilhoso, mas uma materialização frustrante. Para identificá-las é simples: um amontoado de prédios cinza, anúncios de mau-gosto e gente que não vale nada. Até Paris, até Ankara, até Santiago de Compostela são assim. Porque na frente da Sainte-Chapelle tem sempre um porteiro tunisiano discutindo, sei lá, partida do Paris Saint-Germain com o chefe do almoxarifado, enquanto você tenta ver os vitrais. E é essa promiscuidade mental, essa obrigação de estar sempre mal acompanhado, que estraga qualquer coisa interessante que você esteja fazendo em qualquer cidade grande do mundo, de Porto Alegre a Paris.
Mas não é só em cidades que pessoas são viscosas: ao natural mesmo elas não são muito melhores (menos eu e a minha mãe, claro). E o problema não é só aquele cheiro peculiar que sociedades coletivistas ou quartos fechados com muita gente exalam, não. Nunca me esqueço de uma cena de "A la Recherche du temps perdu" em que Saniette, o filósofo paspalho e courinho dos Verdurin, é humilhado num jantar na casa deles. Proust diz, então, que Saniette se retraiu, baixou a cabeça e olhou para os convivas com o olhar resignado de quem sabe o quão pouco valem as afeições humanas (não lembro direito as palavras; devo ter anotado em algum lugar. Mas é mais fácil achar esta cena nos sete volumes de "A la Recherche" do que anotações na minha gaveta). E a vida em sociedade não é muito mais que isso: hordas de Saniettes sendo escorraçados de salas-de-jantar, lutando cômicamente para serem Verdurins uns dos outros. Com a diferença de não entenderem que a vida pode ser menos boba do que isso.
Mas não é só em cidades que pessoas são viscosas: ao natural mesmo elas não são muito melhores (menos eu e a minha mãe, claro). E o problema não é só aquele cheiro peculiar que sociedades coletivistas ou quartos fechados com muita gente exalam, não. Nunca me esqueço de uma cena de "A la Recherche du temps perdu" em que Saniette, o filósofo paspalho e courinho dos Verdurin, é humilhado num jantar na casa deles. Proust diz, então, que Saniette se retraiu, baixou a cabeça e olhou para os convivas com o olhar resignado de quem sabe o quão pouco valem as afeições humanas (não lembro direito as palavras; devo ter anotado em algum lugar. Mas é mais fácil achar esta cena nos sete volumes de "A la Recherche" do que anotações na minha gaveta). E a vida em sociedade não é muito mais que isso: hordas de Saniettes sendo escorraçados de salas-de-jantar, lutando cômicamente para serem Verdurins uns dos outros. Com a diferença de não entenderem que a vida pode ser menos boba do que isso.
Tanto é assim que a boa literatura dos últimos 200 anos tem sido uma constante demonstração do nada que são as relações entre os homens. Madame Bovary cometendo suicídio por amantes que na verdade eram a ela indiferentes. Brás Cubas filosofando amargamente no post-mortem. E a própria "A la Recherche..." não é mais que a história de um homem tentando achar satisfação no amor e na mundanidade e não encontrando em lugar algum a não ser no seu próprio passado. O que os realistas-ou-quase fizeram de bom foi ter mostrado com (sórdidos) detalhes a feiúra da vida deixada por si. Por isso mesmo, o realismo puro é incompleto; depois de escrever "Madame Boavary", é preciso apontar um ideal - o que faz de "Salammbô", por exemplo, um grande romance.
(Porque mesmo fazendo concessões, continuo achando o realismo dull. Não são os personagens que devem parecer pessoas; são as pessoas que deviam parecer personagens.)
Mas a melhor razão para os livros é as roupas serem muito caras. Sério. Se eu pudesse, seria um pequeno Balzac da blogosfera, recebendo 50 reais por cada acesso no meu site e usando o dinheiro para pagar dívidas na Casa das Sedas. Porque, afinal, a beleza é uma coisa-em-si que pode se manifestar tanto num blaser de veludo quanto num poema do Paul Valéry ou no nariz de um menino grego chamado Carolos. E foi graças a estes poemas do Paul Valéry que ontem à noite gastei só 20 reais com "Charmes" e não me endividei em mais de 600 com o blaser que eu queria. Viva a literatura: troquei um pelo outro, escapei de uma boa chance de ter meu cartão de crédito cancelado e ainda voltei para casa satisfeito. Se tivesse achado o menino Carolos numa vitrine por 14,90, a satisfação teria sido completa.
E podem, podem me chamar de alienado. Mas boa parte das pessoas que acompanham em detalhe eventos irrelevantes como vida sexual de atrizes de novela ou crises políticas em países sul-americanos também são alienadas quanto à queda do Império Romano do Ocidente, e ninguém fala nada. Nem eu. Só acho que preferir Gibbon ao casal do Jornal Nacional pode não ser muito comunitário e engajado, mas é mais bonito. Questão de delicadeza gástrica.
8 Comments:
"Mas a melhor razão para os livros é as roupas serem muito caras" - irrefutável. Em "Paris é uma Festa Móvel", Hemingway explica que ou se compra livros e quadros ou se compra roupas. Ele comprava livros com entusiasmo. Eu também. Mas o que eu queria mesmo era poder comprar roupas com entusiasmo.
ludovico, comprar roupas com entusiasmo é uma questão de achar as lojas certas. e os amigos certos para NÃO fazer compania.
;-)
abraço
ah, e era realmente saniette o nome do filósofo? minha imensa preguiça me impede de procurar. se não for e vocês souberem, s.v.p., me avisem. ou não, arrumem mentalmente e me deixem dormir.
;-p
Rapaz, confesso - e confesso com a luz ofuscante no rosto, feito um gordinho encontrado preparando uma bananada no meio da noite - que nunca li la recherche. That's a shame. Mas o dia haverá, o dia haverá. Por hora, estou me divertindo com Wodehouse.
il vaut la peine, ludovico, il vaut la peine. ;-)
agora, sem brincadeira: queria que todas as pessoas que eu conheço fossem com as de "A la Recherche". mesmo as más. mesmo como as pessoas más de "A la Recherche". mesmo que as pessoas boas que eu conheço fossem como as más de "A la Recherche". mesmo (chega; deu pra entender).
acho que é mais fácil pedir ao proust escrever a minha vida. pode ser que lendo a minha vida escrita por ele, até o que teve de ruim pareça bom.
"todo cidadão tem o direito a ter sua vida..."
abraço
O espírito e a cultura francesa, então, são melhor representados por Christian Dior e Yves Saint-Laurent que por Marcel Proust e Charles Baudelaire.
Rodrigo, a minha atual condição de ermitão não me permite concordar: os livros acabam sendo uma boa companhia para quem não quer ser visto.
Se bem que, eu tenho que admitir, isolar-se do mundo usando um jeans Hugo Boss e uma camisa de linho é muito mais charmoso do que fazê-lo com um abrigo de tac-tel (uhhrhhgghhh).
sim, adriano, é exatamente porque é muito melhor estar bem vestido para se isolar do mundo e ler baudelaire, que christian dior e saint-lauren são tão bons quanto marcel proust.
;-)
abraço
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