Mário Quintana era tão bom quanto pouco respeitado. Alguma crueldade explícita a mais, um bom número de reticências e pontos de exclamação a menos e dois ou três cadáveres de criança por lauda, e teríamos um Saki, um Evelyn Waugh na poesia brasileira. Sim, leitora amiga, adoro paralelos exagerados. Mas é fato que Mário Quintana era um dos poucos escritores brasileiros, e o único poeta brasileiro, que sabia escrever com ironia, com maldade. É só comparar com a colegial Carlotta Drummond de Andrade escrevendo crônica.
Isso tudo ficou claro para mim não num poema, mas numa carta de resposta a um crítico. O caso aconteceu na Província de São Pedro, revista em que colaborava gente como Paulo Rónai e Otto Maria Carpeaux, e que está totalmente digitalizada em
www.ipct.pucrs.br/letras/saopedro/index.htm . Em 1945, James Amado - marxista e irmão daquele, daquele mesmo, o Avatar da Literatura Tropicaliente - publicou um artigo crítico sobre a poesia do Mário Quintana. Para ele, Quintana teria "
perdido o bonde na poesia" porque tinha "
se afastado" da sua classe, sendo "
lamentável que ele não tenha se esforçado por chegar a outra classe qualquer"; afinal, como todo mundo sabe, isso "
prejudica a sua arte, que toma o caráter de um derivativo, onde o artista faz jorrar a sua dor, falsa e deprimente." Outros golpes de genealidade crítica: a obviedade de que a "
morte é o único assunto desses artistas (burgueses)", ou o fato ignorado só por Mecken e por meu cachorros de que
"todos os autores burgueses têm em seus livros e poemas o amigo
. É um sentimento que utlrapassa a nossa idéia de amigo, coisa homossexual, típica da decadência burguesa." Claro que sim. A arte burguesa era uma bicha gótica, uma traveca que dublava Siouxie and The Banshees em palco de inferninho nos 80's, sim, sim.
Agora, a resposta de Mário Quintana no número posterior:
"BILHETE AO JAMES
(..)
Li com espanto e apreço o ensaio que V. remeteu à PROVÍNCIA DE SÃO PEDRO e no qual tem a bondade de me avisar de que tomei o bonde errado em poesia. Apressei-me então em ver o que têm feito os poetas que, segundo V., tomaram o bonde certo. Eis don Pablo Neruda: publica ele, numa revista nossa, um ode à sra. mãe de Luiz Carlos Prestes. Abro outra revsita e surge-me Camilo Jesus, com um poema para "Anita Leocádia", filhinha de Luiz Carlos Prestes. Desconsolo-me. Vejo que cheguei tarde, muito tarde. Agora só me restam as tias do sr. Luiz Carlos Prestes...
Mas quero crer que não é bem isso o que V. deseja, e que o próprio sr. Luiz Carlos Prestes será o primeiro a ficar constrangido com essas coisas. Pelo que entendi, quer V. que nós, os poetas, nos limitemos a cantar as reivindicações sociais da nossa época. Não, isto não é negócio para nós, seu James! Pois em vista da projeção nacional do sr. Prestes e da eficiente atividade de adeptos tão sinceros e convictos como V. e os demais camaradas seus, é de crer que muito em breve a questão social estará resolvida no Brasil. E o que vai ser de nós então, os poetas brasileiros? Ficaremos irremediavelmente a pé, sem bonde nenhum, certo ou errado...
Mas felizmente não é bem assim. Há outras coisas, as coisas eternas, que não se resolvem nunca, graças a Deus: estrelas, grilos, penas de amor, anjos, nuvens, mortos, arroios, todas as paisagens, alegrias e tristezas deste e de outro mundo. Há outras coisas... como aliás já dizia o assaz citado Shakespeare: There are more things in heaven and earth, Horatio, than are dreamt of in your philosophy, o que, trocado em bom português atual, dá o seguinte: Há mais coisas no céu e na terra, ó James, do que sonha o materialismo dialético.
Sem mais, disponha, etc."