quarta-feira, outubro 12, 2005

betina highway e o quilombo encantado


Um sabiá levantou vôo; um arbusto se mexeu, e do matinho raso surgiu Betina Highway, lingüista e mãe de três filhos. O uniforme camuflado, o galho na cabeça e o carvão preto na bochecha deixavam claro: estava em missão delicada. Tinha se embrenhado no interior do Amapá; há alguns anos corriam boatos de que nos recônditos da selva equatorial se escondia uma espécie de futuro ativo com gerúndio, agora em extinção.

Examinou com o binóculo a paisagem verdejante: via os telhados das ocas e o totem de uma telecom desconhecida apontando, ereto, para o céu. Não pôde se conter: bateu palminhas de alegria. Após dias de caminhada, tinha chegado finalmente ao lendário quilombo das operadoras de telemarketing. Conta-se ser o último povoado que sobreviveu a anos de treinamento exaustivo, no qual gerentes obrigavam à base do relho estagiárias emocionalmente frágeis a empregar o futuro simples durante o horário do expediente. Um grupo de estagiárias carentes entrou, então, em motim e fugiu para a selva, onde, diz a lenda, fundaram um quilombo em que a propriedade é coletiva, a religião é matriarcal e as pessoas "vão estar fazendo" o que bem quiserem, desde que "não estejam prejudicando" ninguém.

Betina tocou o apito. Do meio do matagal, surgiram seus mestrandos em roupa de safari, meio entediados; tribos de negrinhos semi-nus contratados vinham carregando bagagens, e meia-dúzia de elefantes cambaleavam cabisbaixos pela sintaxe gerativa sob quarenta e três graus e alguns exércitos de moscas. A expedição a postos, todos se dirigiram para a aldeia.

Silêncio. Espiaram a primeira oca: apenas utensílios domésticos espalhados, um cão magro com parkinson e um pilha de romances Sabrina ao lado da cloaca. O mesmo na segunda, o mesmo na terceira oca, e assim por diante. À medida que se aproximavam do centro da povoação, viam ossos quebrados e esqueletos com restos de peruca; alguns conservavam ainda os terninhos azul-marinho do uniforme. Os sinais eram claros demais: alguma coisa de terrível havia acontecido no povoado: uma epidemia, uma guerra, uma invasão de povos avizinhados. Betina estava aterrada; conseguira cinco bolsas do CNPQ para ver esqueletos mal vestidos? Talvez tivesse que adulterar os dados novamente no relatório desse ano.

Chegaram, então, ao centro da aldeia. Pararam em frente à oca mais alta: "Só pode ser a da operadora-pajé", disse um dos seus mestrandos, carcomido de bexigas. Dentro, viram as cenas mais atrozes: imagens de unicórnios new age cobriam as paredes; bonecos com fotos de ex-namorados jaziam furados por agulhas de tricô; o que antes fora uma fogueira não era mais que um fogo morto, e em frente ao carvão, uma caveira coberta de colares e penas e amuletos orientais segurava um giz de cera sobre um papel de carta em que se lia:

OS AMERICANOS NÃO TÊM NADA A VER COM FUTURO COM GERÚNDIO, CARALHO!

Betina Highway bateu uma foto, emocionada; estava mais do que nunca convencida da importância civilizatória da lingüística. Já não precisaria adulterar o relatório.

4 Comments:

Blogger Odorico Leal said...

Betina Highway, alcunha impagável.

*

Rapaz, o livrinho do Wallace Stevens vale ouro. Ao lado de "Domination of Black", está o "Tattoo", que é arrasador. Muito bom.

Abraço,

7:52 PM  
Blogger rodrigo de lemos said...

gostou, então? não lembro deste "tattoo", vou prestar atenção. gosto das "six significant landscapes"; tem neste volume, não?

abraço

12:27 PM  
Anonymous Anônimo said...

"Sunday morning" é o meu favorito.

2:47 PM  
Blogger rodrigo de lemos said...

"complacencies (???) of the peignoir..."
delicioso. um convite ao onanismo.

(mas não estou chamando o wallace stevens de punheteiro.)

abraço

6:36 PM  

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