"ih, lá vem a Arte Profunda de novo!"
A Arte Profunda era uma criança solitária. Na hora do recreio, ela comia a merenda sozinha, mamando uma garrafinha de Yakult morno enquanto as outras crianças jogavam nilcon. E andava melancolicamente de balanço, e se perdia num olhar de devaneio para o horizonte, imaginando mil maneiras de eliminar aqueles coleguinhas insolentes exatemente como o seu estômago digeria agora hordas e hordas de lactobacilos vivos bons no handebol.
Ela bem que tentava se entrosar com a exculsivíssima aristocracia da turma 120. Mas era pedir para entrar no time que as coleguinhas se entreolhavam, revirando os olhinhos precocemente maquiados: "Ih, lá vem a Arte Profunda de novo!". E ela acabava ficando fora da quadra, de gandula.
Até o dia em que a Arte Profunda descobriu um livrinho precioso na biblioteca da escola. "O que é o existencialismo?", coleção Primeiros Passos, sob caixas e caixas de moletons Hard Rock Café-Orlando para a Campanha do Agasálio. Uma revelação. Foi ler o primeiro parágrafo, e a Arte profunda sentiu o chão trepidar e a Máquina do Mundo se abrindo para ela, e a Máquina do Mundo era caolha, fumava cachimbo e não tomava banho - e tinha escrito parágrafos ilegíveis em "O Ser e o Nada". "Oh, ela é tão profunda!", pensou a Arte Profunda. Mas a Máquina do Mundo era também muito feia, segundo me consta.
Foi neste dia que a Arte Profunda começou a pintar. Cada camada de drop-painting que ela lançava sobre a tela era um lactobacilo aristocrata e bom de handebol a mais que ela simbolicamente aniquilava no seu estômago neo-expressionista.
Anos mais tarde, ao inaugurar uma exposição individual no Centro Georges Pompidou, a Arte Profunda revelou às ávidas câmeras da tv francesa: " Foi naquele dia que eu entendi a minha função como artista. Nomear o Inomeável, dar Voz aos Excluídos, apreender o Mundo na sua Totalidade... Beleza é coisa pra quem joga nilcon." E ela se sentiu vingada dos coleguinhas insolentes ao dar este touché em plena TV5 - sendo que esses não sabiam nem o que era TV5, nem o que era o Centro Pompidou.
Atualmente, as obras imortais da Arte Profunda são estudadas por eruditos do mundo inteiro. Só por eles, é claro; mas a série "Olhares sobre o Mundo Contemporâneo", por exemplo, deu origem a mais de 5 linhas de pesquisa em universidades latino-americanas, as quais se dedicam a estudar suas 28 litogravuras em latinhas de óleo Soya sob a Perspectiva feminista, a Perspectiva adorniana, a Perspectiva de Foucault. E assim a Arte Profunda virou a musa do filisteísmo inteligente, do filisteísmo chic.
Entretanto Tavinho Tavalera, o colega bichinha da Arte Profunda naqueles dias de Yakult, virou designer da Rosa Chá. Condenado a desenhar eternamente biquinis com "motivos locais" - ou seja, biquinis com miçangas - ele não teve o nome imortalizado por teses sobre "A influência da caatinga na obra de Tavinho Tavalera" ou "Do lixo ao luxo: percursos da moda brasileira no mercado intrenacional". Não que ele não merecesse; ao menos Tavinho conhecia a formação das cores melhor do que a Arte Profunda. Mas os professores da Universidade Federal da Filistéia declararam sumariamente que "as suas roupas pode até ser bonitas, mas falta-lhes profundidade" - exatamente como letras de Gershwin e livros de Wodehouse. O imperialismo acadêmico da UFF é um dos poucos imperialismos que não conhecem fronteiras entre Primeiro e Terceiro Mundo.
Ao menos, Tavinho Tavalera conseguiu dar o troco à aristocracia da turma 120. Vestia as mulheres do seus ex-colegas, aqueles que não assistiam à TV5. E cobrava delas 25% acima do preço normal. "Isso é por não terem me escolhido pro nilcon", jusitificava para si mesmo. Enfim, o mesmo objetivo da Arte Profunda, só que com uma estratégia mais eficiente.