sexta-feira, junho 24, 2005

terapia de casal



Ele (quarta-feira, 15:25)"Veja bem, doutora, não é que eu seja veado, não. E espero que nem louco eu seja. Mas era a minha mulher sair de casa, que eu corria direto pro quarto. Abria o armário e ficava no espelho da porta, medindo o peitoral, contraindo o bíceps, cortando os pelinhos da barriga. E olhava de canto pra gaveta das meias-calças: "Não, hoje não, hoje não...". Aí, resolvia fazer outra coisa, sei lá, passar um café. Mas quando eu chegava na cozinha, ou a cor do café me lembrava um batom que eu adoro, ou o brilho do azulejo me lembrava o esmalte vermelho com que ela pinta as unhas do pé. E eu voltava pro quarto correndo, pra provar, sei lá, uma écharpe, um shortinho de elanca, uma blusa de alçinha. Ficava pensando: "Tudo bem, eu já vou tirar, eu já vou tirar". Só que quem disse que eu conseguia? Vinte minutos depois, já saía de maquiagem pronta, me equilibando num salto 12, e com a peruca rosa que ela usou no carnaval de 99."

Ela (sexta-feira, 17:40) "Doutora, eu já não sabia o que fazer. A primeira vez foi num passeio ao Itaimbezinho. Fazia um frio danado, e a gente decidiu descer do carro. Bom, comecei a espirrar na hora. E ele, vendo como eu tava, me emprestou um terno; acho que era de lã o terno, não me lembro bem. Primeiro, eu achei bontitinho, gentil, aquela coisa de primeiro ano de casados. Mas foi eu me olhar no reflexo do carro, que, nossa, fiquei espantada. Aquele terno! Me senti uma enfermeira alemã, aquelas da Segunda Guerra, sabe? Eu nunca tinha me achado tão linda. Tanto que fiquei pensando nisso durante a viagem inteira. E foi eu chegar em casa que, pronto, na primeira oportunidade, vesti as roupas delede novo. De lá pra cá isso tem acontecido sempre, e olha que já faz uns três anos!"

Ele (quarta-feira 15:52) "Não, não, doutora, eu não quero que a senhora me entenda mal. Não é que eu ficasse em casa de colã, fazendo bolo, lixando unha ou vendo novela do Sílvio, não. Nem sou do tipo que anda por aí rebolando de sandália ou se oferecendo pros caras que jogam pelada no campinho. É tudo irmão, tudo parceria. Não, não, o que eu fazia mesmo era pegar uma ceva e ver, sei lá, futebol ou pay-per-view de vale-tudo. (Tá certo, tá certo, vale-tudo é meio suspeito, mas...) E o legal é que às vezes aparecia o Xandão, o meu vizinho de porta. Era o máximo quando ele me visitava; a gente fazia um chá, trocava umas dicas de maquiagem, depois jogava truco e ficava falando de mulher ou de carro. Sabe, o Xandão é parceria, gente fina mesmo, e entre nós era tudo no mó respeito - menos quando eu dei risada da meia-claça dele, que tava com fio puxado, e ele me deu uma bolsada."

Ela (sexta-feira 18:02) "... aí eu não conseguia mais parar. Era doença isso, doença. E eu me sentia tão culpada! Quando ele saía pra viajar, então! Eu tentava me controlar; ia ao cabelereiro, ao cinema, ao shopping, comprava um monte de roupa - de mulher, claro. Mas era eu chegar em casa, que pronto, não me dava vontade de usar nada do que eu tinha comprado. Abria o armário dele e ficava lá, olhando as roupas; gravata vermelha, terno creme, sapato marrom, camisa de jogar tênis, e até aquela sandália fransciscana que ele usa na piscina e eu odeio. Aí, eu não resistia: ia pro banheiro e pintava um bigodinho de cajal. Ficava horrível, parecia cruza de K.D. Lang com caipira de festa junina. Só que era irresistível, doutora, irresisitível. Bah, e que vergonha admitir isso pra senhora, que vergonha! Mas tem uma coisa que eu nunca fiz: colocar bolinha de tênis no meio das pernas pra fazer volume e poder coçar o saco. Isso eu acho de última, coisa de gente baixa, sapata, machorrão, juro que nunca fiz. Tá, tirando uma vez, que.... (e não consegue segurar as lágrimas)."

Ele (quarta-feira 16:15) "Acontece que um dia a Gabriela percebeu. Quer dizer, dessa vez ainda foi de leve; ela reparou que um vestido de lycra tava meio esgaçado bem na barriga. Como eu, já dois anos de casado, andava meio fora de forma, não era difícil... E não é que ela chegou mesmo a me perguntar o que tinha acontecido com o vestido! Eu tremi nas bases, mas respondi que, sei lá, que era tudo culpa da lavanderia, que estragava também as minhas meias. Ela me olhou estranho, mas não falou nada. O problema foi de noite. Não consegui pregar o olho um minuto! Ela tava dormindo profundo, mas também super agitada, e se virava de um lado pro outro. Até que numa dessas ela me abraçou por trás e, fazendo movimentos de penetração, murmurou: "Ai, minha potranca". Aí que eu não consegui mais dormir mesmo. "

Ela (sexta-feira 18:20) "Eu já tava desesperada. Meu Deus, nem pra Fabi, minha amigona, eu falei disso. Afinal, sabe-se lá o que não ia passar pela cabeça dela. Mas quanto ao Carlos, eu tinha certeza de que ele sabia. Por exemplo, um dia eu percebi que o meu vestido de lycra tava esgaçado. E, como eu adorava aquele vestido, perguntei se ele sabia por que tava daquele jeito. Doutora, ele me olhou com uma cara tão estranha, tão desconfiada, cara de "me engana que eu gosto", que eu tremi! E eu tive certeza de que ele tinha descoberto tudo, talvez pelo meu perfume numa camisa, ou pela bagunça que eu deixava no armário. Mas o pior é que ele só resmungou alguma coisa sobre a lavanderia; ou seja, não quis tocar no assunto - e só Deus sabia por quê. De qualquer jeito, fui dormir ressabiada, e a gente mal se falou antes de deitar. Quando eu acordei, então, dava pra ver que a noite tinha sido ruim, e nem me olhar direito ele podia."

Ele (quarta-feira 16:20) "Mas o pior aconteceu na semana passada. Como ela sempre chegava às seis, eu tirava tudo às cinco, cinco e meia, pra não dar galho. Mas nesse dia ela chegou..."

Ela (sexta-feira 18:30) "...às quatro e vinte, quatro e meia, que eu não tava conseguindo trabalhar. Tava super ansiosa, queria conversar sobre a outra noite. Me senti mal, tri culpada. Mas de boba, doutora, de boba. Porque, ao abrir a porta, ai, que eu não quero nem lembrar!, ao abrir a porta, foi trash: tava ele vendo Aimoré X Juventude, com o meu top azul-turquesa, uma peruca black power cor-de-rosa, e calçando a minha Melissinha da Wanessa Camargo! Ele me viu e ficou paralisado. E que ódio que eu fiquei vendo a minha Melissinha 38 naquele pé 42! É por isso que ela já tava um bagaço! A Wanessa Camargo já era mais a Glória Menezes, de tão esticada! Ai, que raiva.

Fiquei uns cinco minutos em choque. E ele todo nervoso, trazendo água-com-açúcar, um pé com sandália, outro sem, tentando se equilibrar. Foi aí que eu aproveitei para ser má: atirei o copo na cara dele. Aquela cara, já meio empaspalhada, ficou tão triste, tão patética com rímel borrado até o queixo! Começei a gargalhar, a chorar, a gritar, e ele, tonto, sem falar nada; ficamos a tarde inteira naquilo. Até que tomei fôlego e fiz o que precisava: pedi a separação. Ele levou dos dias pra acreditar que eu falava sério.

Só que eu também não acreditava. Fiquei me lembrando daquele armário, daqueles terninhos, daquela regata de propaganda de cimento, das samba-canção; e mesmo a sandália franciscana me deu um aperto no peito. Não sabia o que fazer. Até que me lembrei do frou-frou de bailarina que eu tinha guardado da minha época de adolescente - e me lembrei também do nosso marasmo sexual, de como eu gostava de me vestir com as roupas dele, de como ele gostava de se vestir com as minhas, e aquele frou-frou de bailarina me deixou tão excitada! Porque juntar roupa com frou-frou, dois ou três legumes elétricos e o meu Carlinhos numa mesma fantasia seria o máximo! E eu de bigodinho! O problema é saber se ele topa, se não vai se ofender. Tu entende a minha dúvida, né? Ao mesmo tempo, vale arriscar; isso pode salvar o nosso casamento. Mas o que tu acha, doutora? Será que eu tô louca? Será que é demais? E será que vai dar certo? O que tu acha, diz aí, doutora, o que tu acha, que conselho tu me dá, o que eu faço, doutora Rogéria?"

Doutora (sexta-feira 18:38)"Eu dou a maiorr forrça. E não é Rogéria, meu bem, é Astolfo."


Madame Astolfo: cantora, atriz, performer e terapeuta de casais (especialista em casos de travestismo mútuo).

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Dahling, te superaste nesse!

Até.

2:25 PM  
Blogger rodrigo de lemos said...

thank you, darling, thank you. (e segura o buquê de flores sob aplausos frenéticos.)

;-)

2:34 PM  

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