o romance que eu não vou escrever
Hoje de manhã, eu vi um casal se beijando em frente de casa. Pelo portão aberto, o cachorro latindo no jardim e o Style Council no som do carro, bem yuppie, presumo que alguém estivesse saindo pra trabalhar. E achei bonito, burguesmente bonito.
(Digo "burguesmente" porque se fosse a Kriemhild beijando o Siegfrid nas portas do castelo antes da caçada a um javali, daí seria nobremente, aristocraticamente bonito. E bonito estaria com letra maiúscula, for sure.)
O que não quer dizer que eu ia chatear todo mundo escrevendo um romance de 500 páginas em que só houvesse isso. Um casal se beijando ao som de "You're the best thing" e uma média de oito epifanias por lauda. Hell, I mean, hell, don't you think? Outras coisas no mundo valem um romance muito mais do que o cotidiano, do que um casal se beijando, do que um menino que se descobre gay num banco de bicicleta ou do que uma garota tomando banho com um sabonete anti-sarna - "E Wandinha, ao abrir a embalagem de Protex, viu-se iluminada por uma luz divina e disse: 'Somos todos ácaros de escabiose na pele do Supremo Ser...' ". Acredite, leitora amiga, um beijo do namorado não é nada. Perto do César conquistando a Gália, do Luís XVI sendo decaptado ou duma viagem à lua em engenhocas voadoras, o cotidiano não é nada, nem muito divertido é.
Quer dizer, não é que o cotidiano não seja nada. É que depende de onde você passa a maior parte dos seus dias. Por exemplo, chegou a primeira televisão a cores no interior de Sapiranga; em Porto Alegre, isso não quer dizer absolutamente nada. Mas em Sapiranga, com certeza, muitos vão se salvar do suicídio. E tão menos a abertura de um bar de strip-tease em Porto Alegre vai fazer alguma diferença na vida sexual dos executivos de São Paulo ou de Buenos Aires, ou mais uma montagem de "Esperando Godot" com drag-queens caolhas em São Paulo vai causar frisson em Londres ou Nova York. E agora imaginem o impacto dum casal porto-alegrense se beijando em frente de casa na vida dos londrinos. É mais ou menos como comparar a nossa vidinha pessoal com a invasão do norte da África pelos vândalos. Ou seja, só escreve livros sobre o cotidiano quem passa a maior parte do tempo vivendo em Sapiranga (a própria pele) e nunca viu um arranha-céu (a Grécia antiga, a China, Marte com vida). Falta ou de imaginação, ou de conhecimento.
Porque, leitora amiga, existe uma hierarquia nas coisas. E a nossa vida pessoal (brigas, festa, família, emprego), tudo isso está no último nível. Pode valer um miniconto, mas não segura um romance. Ao ver os dois se beijando no portão de casa, me dei conta de que escrever um livro sobre o cotidano é como escrever sobre uma guerra feita só com cabos de vassoura: pode até ser engraçadinho no começo, mas depois enche o saco. Uma hora, a gente tem que ver sangue. E disso tudo, me veio a conclusão: "Vou escrever uma epopéia".
4 Comments:
Tá, tá, tudo bem. Mas eu não acho que, digamos, a guerra do iraque (é, com letra minúscula mesmo) valha 500 páginas. Ainda prefiro os ácaros, eles podem ser tão cativantes.
é vero, mas a guerra do iraque não vale 500 páginas só porque ela é atual. daqui a uns 200 anos, vai ter alguém que vai fazer uma epopéia linda sobre. sugestão de primeiro verso: "As armas e os varões assinalados..."
abraço
É, talvez César conquistando a Gália fosse, na época, um assunto muito mesquinho, assim como a guerra de Tróia. Agora, dá um horror imaginar o Bush como o Agamemnon, não dá?
olha, até pode ser, mas o sargento montgomery que eu estou imaginando é um pátrocolo dos melhores (principalmente o peitoral)..
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