sexta-feira, maio 27, 2005

nota fúnebre em memória do palhaço chuvisco gouveia


"Morreu ontem o palhaço Chuvisco Gouveia.

Verdadeiro mito para a geração que hoje beira os 60 anos, Chuvisco foi o primeiro palhaço existencialista do país. No passado, fez fama ao divulgar Sartre e Camus no Brasil, mas na década de 80 perdeu popularidade. Tudo por causa da influência de concorrentes mais novos - entre eles, Bozo, o palhaço junkie, e Vovó Mafalda, o palhaço travesti (sinal dos tempos). Nos últimos anos, jazia esquecido entre as árvores do Parque Farroupilha, cercado por bolas coloridas e balões do Bob Esponja, repetindo mecanicamente falas de "Huis-Clos". E, enquanto as crianças corriam atrás do Pimpão e da Véia Flor para pegar brinquedos, Chuvisco ficava sozinho. Sua única companhia era um casal indie que o visitava de quando em quando para ganhar livros, conselhos amorosos e duas ou três tripas de bala Xaxá, sabor abacaxi.

"Seja marginal; seja herói, cara." - Chuvisco não fazia propaganda da própria rebeldia. Era um dos poucos outsiders legítimos na cidade. Não parava em circo algum, por exemplo. Porque o público não o entendia, e porque as crianças deixavam o espetáculo na metade da única piada que contava - sempre a mesma piada, envolvendo dois potes de marmelada, uma buzina d'água e o mito da condenação de Sísifo no Hades. Na década de 70, houve uma que gritou bem alto "alienado pequeno-burguês", ou algo do tipo. Porém Chuvisco, num golpe memorável, respondeu que também queria a libertação do proletariado, mas que essa só se daria se antes houvesse a libertação do indivíduo. Foi sua fase marxista-sartriana.

Estrela cadente- Com a ascensão de Bozo no SBT, sua carreira ficou comprometida.

Recebia poucos convites para a televisão, e menos ainda para animar aniversários de criança.

Nos últimos 20 anos, tinha crises de depressão freqüentes. Mas sua rebeldia era tanta que nem as clínicas psiquiátricas o aceitavam por muito tempo. Se recusava, por exemplo, a tirar o suspensório e o bambolê que usava como calça. Assim, quando as enfermeiras chegavam, viam aquele volume enorme embaixo dos lençóis e achavam que ele estava sempre de barraca armada. Pensavam que era um tarado, que podia estuprá-las, e houve uma que teve crises de choro, dizendo que 30 cm era demais para ela. Espalhava o caos por toda clínica que passava.

Mas era só libera-lo que, certo, atentava contra própria vida. Da primeira vez, tentou enforcar-se no chuveiro com uma bexiga em forma de lingüiça. Na segunda, comeu doze quilos de algodão doce. O que lhe valeu uma lavagem estomacal e cinco centímetros a mais na pança, afinal.

Fracassado até no suicídio, Chuvisco entrou, então, num lento processo de auto-destruição. Entregou-se às drogas. Amanhecia no meio-fio da Oswaldo Aranha, entre palhaços punks, headbangers e travestis - a desenfreada Vovó Mafalda entre eles, é claro. Chegou mesmo a aproximar-se de seu maior rival, o palhaço Bozo, que controlava o maior cartel do país na época, só para conseguir cocaína mais barata.

Mas tocou realmente o fundo do poço quando, para sustentar o vício, começou a se prostituir. Parava numa placa de ônibus na José Bonifácio, lançando olhares lânguidos aos passantes e esfregando entre as pernas uma bexiga roxa em forma de pênis. Fazia o maior sucesso com senhores mais velhos, os quais desejavam ter por uma noite o palhaço que, quando crianças, ouviam no rádio declamando passagens de "A peste" .

Morre uma estrela- Foi "animando" seu último aniversário de criança que Chuvisco morreu.

O aniversariante, um garoto de seis anos, chorava com medo da sua cara triste. O pai já queira demiti-lo, e Chuvisco, deseperado, resolveu soprar a primeira língua-de-sogra que encontrou sobre a mesa, só para acalmar o menino. Entretanto, nunca havia feito isso antes em sua longa carreira de palhaço e se atrapalhou: colocou a língua de sogra ao contrário na boca, e, ao invés de assoprar pra fora, assoprou pra dentro. Como era de esperar, o bringuedo se abriu na sua traquéia, bloqueando a entrada de ar, e Chuvisco morreu engasgado, com farrapos umedecidos da Pequena Sereia grudados na garganta. Morte brutal e estúpida, que comoveu a comunidade indie de Porto Alegre e do país inteiro.

O velório irá até amanhã, às 18 horas, no cemitério São Miguel e Almas, capela 16. Centenas de pessoas já se aglomeram às portas da capela para dar seu adeus ao palhaço mais profundo que o Brasil já conheceu."

A partir da próxima semana, a sala P.F Gastal estará com uma programação exclusivamente dedicada ao palhaço Chuvisco Gouveia. Entre os filmes apresentados, estará uma filmagem da palestra que Chuvisco fez na USP em 1973 sobre "Construção de sentido na vida contemporânea", em que borrifou água na cara da Marilena-Shall-We?, e a sua tournée dos anos 60 pela Europa, que culminou com um dueto de karaokê no lendário Café Deux Magots, de Paris, em companhia do filósofo francês Jean-Paul Sartre.

3 Comments:

Blogger Odorico Leal said...

Que história infeliz a do palhaço Chuvisco. Na década de oitenta, tivesse desistido do existencialismo e corrido de braços abertos para o desbunde pós-moderno, talvez tivesse tido destino menos patético. Talvez virasse artista plástico, daqueles que fazem cocô no meio da rua, enquanto outros ficam reparando e comentando, solenemente: "olhai, olhai, ele está fazendo uma intervenção"!

;-P

3:15 PM  
Anonymous Anônimo said...

ha ha ha

muito bom. abaixo os indies angustiados!

11:06 AM  
Anonymous Anônimo said...

Proponho não um minuto, mas uma vida inteira de silêncio para o palhaço Chuvisco.

3:22 PM  

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