quarta-feira, setembro 07, 2005

anabela e sua estufa dos prazeres, ou a insondável questão ética da clonagem


Rodaram a manhã inteira. Três bairros vistos, revistos, revirados, e nada. Praticamente nenhum imóvel com mais de três dormitórios; quando muito, quatro. A única casa com anúncio de cinco quartos era horrível, tinha mau hálito e infiltração; além disso, o quinto quarto só podia ser a gaiola de hamster guardada na área de serviço. “Inferno de classe média que não faz filho. É no que dá falta de religião.” O corretor tinha súbitos acessos de religiosidade ortodoxa quando uma comissão ameaçava não sair.

Pouco depois do meio-dia, ele deixou a cliente em casa. Não entendia por que uma professora de espanhol – “chileno”, ela levantava o dedo, “espanhol chileno, que é o espanhol mais puro da América Latina” – pobre, sozinha, com mais de 50 anos e pouco potencial para satisfazer os mais tolerantes padrões de beleza feminina, poderia querer uma casa maior que aquela. Casar, filhos? Improvável. Lembrou-se então dos três porões lacrados que ela não deixou abrir. E passou a suspeitar de ações levemente mais criminosas que a maternidade: prostituição, clínica de aborto, tráfico de anões. E ainda aquela estufa no fundo do terreno, que ela não tinha nem mencionado.

- A senhora me deixa ver a casa de novo? Sabe como é, tem peças em que eu não entrei, e é sempre bom conferir antes de pôr o anúncio...

- Não, hoje não. – Anabela parecia sem jeito – Eu tenho visita às duas. Quem sabe amanhã.

Era mentira. Anabela era uma das poucas pessoas enfadonhas que mentia com perfeição.

O corretor assentiu, acelerou o carro, e ela entrou em casa.

A sala estava em ordem. A cozinha também. Desde que tinha lacrado os porões, latas de marmelada não eram mais chafurdados na geladeira, e vestígios de macarrão ao sugo deixaram de aparecer esmagados contra a tela da tevê. Sorriu, satisfeita de si: “Hay que endurecer, pero...”. Foi o seu mot-d’esprit da semana.

Depois do banho quente e do almoço um pouco menos, Anabela se deitou. Mas dormiu mal; só conseguia pensar numa casa maior – e em mais conforto para “os seus guapos”. Então se levantou de um salto: “Vou ver como eles estão.” E calçou suas pantufas encardidas, decoradas com carinhas sorridentes de Isabel Allende.

Foi até o pátio e abriu o primeiro porão. Uma luz poeirenta entrou na peça escura, e doze ou treze vultos humanos de formas altamente desejáveis se voltaram para ela. Eram os seus Jude Laws. Sem nome, sem roupa e com os cabelos desarrumados, estavam em beliches triplos, arranhando móveis com as unhas compridas e jogando tênis com o conteúdo dos seus penicos de areia. Ao verem Anabela, pararam. E então duas dúzias de olhinhos azuis brilharam no escuro, largaram suas brincadeiras vikings e, balbuciando o nome dela, arremessaram-se no seu colo. Anabela não sabia o que fazer. Os Jude Laws tentavam sair do porão, agarravam-se ao seu saião de cambraia, ao seu cordão de Nossa Senhora das Dores, e ela teve de domá-los a vassouradas. Quando finalmente se acalmaram: “Hoje vocês vão dormir sem beijo da mamãe. Estão muito mal-educados. Talvez depois do jantar, e só no caso de se comportarem.” Gritos de angústia foram a única resposta, e ela só conseguiu abrir a porta novamente para atirar um saco de ração Whiskas. “Ah, é assim? Então sem beijo antes de dormir.” E os gritos se transformaram num choro pegajoso, de criança contrariada. Sem saber, Anabela corria o risco de inspirar uma nova “A la Recherche du temps perdu”, quem sabe em espanhol (chileno).

Seguiu então para o segundo porão. Era o dos Marcelos Mastroiannis. Esses já eram um pouco mais velhos. Quer dizer, eram todos Marcellos Mastroiannis adultos, assim como os Jude Laws eram Jude Laws adultos, mas ao invés de estragaram os móveis ou emporcalharem o quarto com penicos virados, já tinham curiosidadezinhas sexuais e organizavam reuniões dançantes ao som de Pepino di Capri. O tempo todo. À noite, Anabela tinha sérios problemas para dormir. Era obrigada a ouvir até a exaustão sucessos de vendas como “Sapore di Roma” ou “As Melhores Canções Italianas Para Cruzeiros”. E pior: os Mastroiannis já tinham espinhas e começavam a se rebelar. Neste dia mesmo, quando Anabela abriu a porta e pediu para eles arrumarem os beliches, a única resposta que obteve foram charmosos xingamentos em italiano. Ela adorava italiano, o que talvez explique a sua reação tão delicada: “Porcos! Mal-agradecidos! Só agüento vocês ainda por causa da ‘Doce Vida’!”. E atirou para eles outro saco de Whiskas.

Mas era no terceiro porão que estava o seu tesouro. À medida que dele se aproximava, o cheiro de laquê ficava mais e mais intenso nas suas narinas. Canções de Luiz Miguel se faziam distinguir melancolicamente no quintal. E ao abrir a porta, uma onda de espanhol chileno invadiu seus ouvidos sedentos de beleza, e um raio de luz divina iluminou as suas calçinhas no varal.

Eram seus Carlos Miguéis Yturris. 25 deles. Afinal, tratava-se de seu ídolo de infância. A mais remota lembrança que tinha era a de uma tarde na casa da avó. Ela, com a boca cheia de pipoca doce e guaraná, assistia a uma elegante novela chilena; canções de amor profano intrigavam sua imaginação ainda virgem, e do nada surge o design obsceno do bigode do galã. Coup de foudre. Ela se apaixonou imediatamente por Carlos Miguel Yturri – e por essa peculiar variação do espanhol latino-americano. E agora, com o verdadeiro Yturri morto de gastrite há uns cinco anos, Anabela considerava a possibilidade de enviar um de seus clones ao Chile, para um remake de “Coração Ferido”, grande sucesso na década de 70.

Encantada sempre que os via, Anabela ficou parada na porta. Admirava sua obra máxima. Então, um deles fez sinal para que sentasse. “Precisamos conversar”, disse um segundo Yturri, pegando o saco de Whiskas “Tenho algo de importante a te dizer.” E Anabela suspirou de tédio por antecipação. Tinham bigodes másculos, topetes sólidos, ternos rosa-bebê impecáveis, mas tinham também este je ne sais quoi de melodramaticamente repetitivo. Ela fez menção de se levantar. Um terceiro a conteve:

- Não, não fuja. Já era hora de você saber. Eu não sou seu...

- Pai, completou Anabela. E vendo a decepção do outro: “Claro; semana passada você não era meu irmão; na retrasada, meu tio; na outra, não era realmente meu marido. Já foram todas as possibilidades, meu caro.” Um quarto tentou ainda:

- Eu não te amo mais.

- Nem eu.

Outra decepção evidente.

E então os outros 22 Yturris a cercaram, todos desesperados, querendo revelar verdades irreveláveis sobre o passado, a família, a suposta relação conjugal de ambos: “Na verdade, você é minha tia...”; “Eu comi a empregada”; “Proletários do mundo,...”. E ela tentando escapar, e braços a segurando, e rostos chegando ameaçadoramente perto do seu. Anabela só conseguiu sair do porão 40 minutos depois, com a cabeça tonta e as roupas esfarrapadas de quem ouviu verdades irreveláveis demais para uma só vez. Mas o que fazer? Aquele era um dos seus pequenos exercícios de felicidade: sentir-se cobiçada como uma Topazio, uma Maria do Bairro tinham sido. Voltou para casa com fome; com fome e satisfeita.

Mas antes de chegar em casa, passou ainda pela estufa e espiou por uma fresta lá para dentro. Era ali que morava a sua felicidade de cinqüentona. De onde estava, podia ver aquelas preciosidades, aqueles umbiguinhos surrupiados de fãs-clubes femininos, tão pequenos, tão práticos, tão fáceis de preparar. Era só tirar uma raspinha, misturar com leite, dar uma mexida e, feito: um Rodolpho Valentino prontinho, em idade adulta. Sentiu uma irreprimível vontade de fazer outro Yturri, mas se conteve e fechou a porta. Clones não eram Nescau.

No caminho, lhe veio à cabeça algo de urgente. Correu ao telefone. Tinha se lembrado dos umbigos do Montgomery Clift, do Paul Newmann, do Robert Redford, todos guardados ali na estufa.

- Alô, é o Sr. Correia? Aqui é a Anabela; o senhor esteve comigo hoje pela manhã. Escuta, sabe aquela história da casa? Pois bem, é que eu mudei de idéia quanto ao número de quartos. – Ouviu-se um suspiro de alívio do outro lado – Tem que ser oito, não cinco dormitórios. – Não se ouviu suspiro algum do outro lado. E então ela lembrou também do umbigo de Yturri, que ainda renderia mais uns clones – Opa, não: nove.

2 Comments:

Blogger rodrigo de lemos said...

moral da história: clone quem quiser, só não incomode o corretor de imóveis.

5:21 PM  
Anonymous Anônimo said...

Impressesed.

10:36 AM  

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